segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Rostilav Ischenko / A "guerra invisível" da diplomacia russa

A "guerra invisível" da diplomacia russa


por Rostilav Ischenko [*]
Como é que a Rússia, em apenas 20 anos, sem guerras nem outras perturbações, pôde passar duma semicolónia para um reconhecido líder mundial, igual entre os mais importantes?

Os "estrategas" de meia tigela, que acreditam seriamente que um grande ataque nuclear é a solução universal para qualquer problema internacional (mesmo o mais escaldante, perto da confrontação militar), sentem-se desanimados pela posição moderada da liderança russa na crise com a Turquia. No entanto, consideram insuficiente a participação direta das tropas russas no conflito sírio. Também se sentem insatisfeitos com as atividades de Moscovo na frente ucraniana. 


No entanto, não se percebe porque é que ninguém faz uma pergunta simples. Como é que aconteceu que, de repente, a Rússia começou a fazer frente ao poder hegemónico mundial e, além disso, ganhou com êxito em todas as frentes?

Porquê agora? 


No final dos anos 90, a Rússia era um estado que, económica e financeiramente, estava ao nível do terceiro mundo. Fervilhava uma rebelião anti-oligarquias no país. Estava a travar uma guerra infindável e sem esperança com os chechenos, que se alargava ao Daguestão. A segurança nacional repousava apenas nas armas nucleares mas, quanto a realizar quaisquer operações a sério, mesmo dentro das suas fronteiras, o exército não tinha nem pessoal bem treinado nem equipamento moderno, a frota não navegava e a aviação não voava.

Claro que todos podem dizer como a indústria, incluindo a militar, foi sendo gradualmente revitalizada, como o crescente nível de vida estabilizou a situação interna, como o exército foi modernizado.

Mas a questão fundamental não é quem mais fez para reconstruir as forças armadas russas: Shoygu, Serdukov, ou o Estado-Maior. A questão fundamental não é quem é melhor economista, Glaziev ou Kudrin, e se teria sido possível atribuir ainda mais recursos às despesas sociais.

O fator chave desconhecido nesta questão é o tempo. Como é que a Rússia teve tempo, porque é que os EUA deram tempo à Rússia para preparar a resistência, para criar músculo económico e militar, para aniquilar o lobby pró-americano financiado pelo Departamento de Estado, na política e nos meios de comunicação? 

Porque é que a confrontação aberta, que agora aparece em Washington, não começou mais cedo, há 10 ou 15 anos, quando a Rússia não tinha possibilidade de resistir às sanções? Na realidade, os EUA, nas décadas de 1990 ou 2000, começaram a instalar regimes fantoches no espaço pós-soviético, incluindo Moscovo, que foi considerado como uma das várias capitais da Rússia desmembrada.

O conservadorismo saudável dos diplomatas 

As condições para os êxitos militares e diplomáticos atuais foram sendo construídas durante décadas na frente invisível (diplomática).

Deve dizer-se que, entre os principais ministérios, o Ministério dos Estrangeiros foi o primeiro a recuperar da confusão administrativa provocada pelo desmembramento do início dos anos 90. Logo em 1996, Evgeny Primakov foi designado ministro dos Estrangeiros e, para além de alterar o plano do governo sobre o Atlântico, depois de ter conhecimento da agressão dos EUA contra a Jugoslávia, inverteu a política externa russa que, depois disso, nunca mais seguiu o curso dos EUA.

Dois anos e meio depois, recomendou Igor Ivanov para seu sucessor, que lentamente (quase impercetivelmente), mas com segurança, continuou a reforçar a diplomacia russa. Foi sucedido em 2004 pelo atual ministro dos Estrangeiros, Sergey Lavrov, sob cuja liderança a diplomacia acumulou recursos suficientes para mudar duma posição de defesa para uma posição de ataque decisivo.

Destes três ministros, só Ivanov recebeu a medalha de Herói da Federação Russa, mas estou convencido de que tanto o seu antecessor como o seu sucessor também mereciam essa distinção.

Deve dizer-se que a cumplicidade de casta e o conservadorismo saudável do corpo diplomático contribuíram para uma rápida recuperação do trabalho do ministro dos Estrangeiros. A lentidão e o tradicionalismo de que os diplomatas são acusados ajudaram muito. O "Kozyrevshchina" [a palavra deriva do nome de Andrei Kozyrev, o ministro dos Estrangeiros em 1990-1996; a palavra significa "agir como Kozyrev", isto é, de modo subserviente contra os seus próprios interesses – NT para inglês) nunca contaminou o Ministério dos Estrangeiros porque não se adequava.

Período de consolidação interna 

Voltemos a 1996. A Rússia está no fundo do poço, economicamente, mas o incumprimento de 1998 ainda está para chegar. Os EUA desprezam totalmente o direito internacional, substituindo-o por ações arbitrárias. A NATO e a União Europeia preparam-se para alterar as fronteiras russas.

A Rússia não tem como reagir. A Rússia (tal como a URSS anteriormente) pode aniquilar qualquer agressão em 20 minutos, mas ninguém pretende pôr isso em prática. Qualquer desvio da linha aprovada por Washington, qualquer tentativa de exercer uma política externa independente levaria ao estrangulamento económico e à subsequente desestabilização interna – naquela época o país vivia com créditos do Ocidente.

A situação complica-se ainda mais pelo facto de que, até 1999, o poder está nas mãos da elite compradora dependente dos EUA (tal como a da atual Ucrânia) e, até 2004-2005, os compradores continuam a lutar pelo poder com a administração patriótica de Putin. A última batalha de retaguarda travada pelos compradores perdedores foi uma tentativa de revolução em 2011, na praça Bolotnaya. O que teria acontecido se eles tivessem feito essa jogada em 2000, quando tinham uma vantagem esmagadora?

Os líderes russos precisavam de tempo para a consolidação interna, para a restauração dos sistemas económicos e financeiros, garantido a sua autonomia e independência do Ocidente e reconstruindo um exército moderno. E, por fim, a Rússia precisava de aliados. 

Os diplomatas tinham uma missão quase impossível. Era necessário, sem se desviarem de questões fundamentais, consolidar a influência da Rússia nos estados pós-soviéticos, aliar-se com outros governos que resistiam aos EUA, fortalecê-los, se possível, tudo isso criando a ilusão em Washington de que a Rússia é fraca e está disposta a concessões estratégicas.

A ilusão da fraqueza da Rússia 

Uma prova de que esta tarefa foi realizada com êxito são os mitos que continuam a viver entre alguns analistas ocidentais e na "oposição" russa pró-americana. Por exemplo, se a Rússia se opõe a qualquer situação de aventureirismo ocidental, está "a fazer 'bluff' para salvar a cara", as elites russas estão totalmente dependentes do Ocidente porque "o dinheiro delas está lá", "a Rússia está a vender os seus aliados".

No entanto, os mitos de "foguetões enferrujados que não voam", "soldados esfomeados que constroem casas de campo para generais", e uma "economia em farrapos" já desapareceram. Só os marginais acreditam neles, não porque sejam incapazes, mas porque têm demasiado medo para reconhecer a realidade.

Estas ilusões de fraqueza e disposição para recuar, que levaram o Ocidente a acreditar que a questão russa estava resolvida e evitaram ataques políticos e económicos a Moscovo, deram à liderança russa um tempo precioso para as reformas.

Naturalmente, o tempo nunca é demais, e a Rússia teria preferido adiar a confrontação direta com os EUA, que começou em 2012-2013, por mais três ou cinco anos, ou mesmo evitá-la de todo, mas a diplomacia ganhou 12 a 15 anos para o país – um enorme período de tempo no atual mundo em rápida transformação. 

A diplomacia russa na Ucrânia 

Para poupar espaço, vou dar apenas um exemplo muito claro, muito relevante na atual situação política.

As pessoas continuam a criticar a Rússia por não contra-atacar os EUA na Ucrânia, de modo suficientemente ativo, por não ter criado uma "quinta coluna" pró-Rússia para contrabalançar a pró-americana, por trabalhar com as elites, em vez de com a população, etc. Vamos avaliar a situação, com base nas capacidades reais, em vez dos desejos.

Apesar de todas as referências à população, é a elite que determina a política do estado. A elite ucraniana, em todas as suas ações, sempre foi e continua a ser anti-russa. A diferença é que a elite ideologicamente nacionalista (que se está a tornar nazi) era abertamente russofóbica, enquanto que a elite económica (compradora, oligárquica) era simplesmente pró-ocidental, mas não levantava problemas às ligações lucrativas com a Rússia.

Gostava de relembrar que não eram outros senão os representantes do Partido das Regiões, supostamente pró-russo, quem se gabava de não permitirem negócios russos na bacia do Donets. Também foram eles que tentaram convencer o mundo de que eram melhores para a integração no Euro do que os nacionalistas.

O regime de Yanukovich-Azarov precipitou a confrontação económica com a Rússia em 2013, exigindo que, apesar da assinatura do tratado de associação com a União Europeia, a Rússia retivesse e até reforçasse o regime favorável com a Ucrânia. Afinal, Yanukovich e os seus comparsas do Partido das Regiões, embora tivessem poder absoluto (2010-2013), apoiaram os nazis, financeira, informativa e politicamente. Elevaram-nos do seu nicho marginal à política dominante a fim de terem um adversário conveniente nas eleições presidenciais em 2015, enquanto suprimiam qualquer atividade informativa pró-russa (para não falar da política). 

O Partido Comunista Ucraniano, embora mantendo a retórica pró-russa, nunca visou o poder e desempenhou um papel de conveniente oposição leal, apoiando indiretamente os oligarcas, canalizando a atividade de protesto em espaços seguros para quaisquer poderes (inclusive os atuais).

Nestas condições, qualquer tentativa russa de trabalhar com as ONGs ou criar meios de comunicação pró-russos seria considerada uma ingerência nos direitos dos oligarcas ucranianos para se apoderarem do país, o que provocaria uma maior fuga do oficialato ucraniano para o Ocidente, vista por Kiev como um contrabalanço em relação à Rússia. Os EUA, muito naturalmente, veriam isso como uma transição da Rússia para um confronto direto e apoiariam as elites pró-ocidentais em todo o espaço pós-soviético.

Nem em 2000, nem em 2004, a Rússia estava preparada para um confronto aberto com os EUA. Mesmo quando isso aconteceu em 2013 (e não foi por opção de Moscovo), a Rússia precisou de quase dois anos para mobilizar os seus recursos a fim de dar uma forte resposta na Síria. A elite síria, em contraste com a ucraniana, desde o início (em 2011-2012) rejeitou a opção de comprometimento com o Ocidente.

Foi por isso que, durante 12 anos (desde a ação "a Ucrânia sem Kuchma", que foi a primeira tentativa sem êxito dum golpe pró-americano na Ucrânia), a diplomacia russa trabalhou em duas tarefas essenciais.

A primeira foi manter a situação na Ucrânia num equilíbrio instável; a segunda, convencer a elite ucraniana de que o Ocidente era um perigo para o seu bem-estar, enquanto a reorientação para a Rússia era a única forma de estabilizar a situação e salvar o país e a posição da própria elite. 

A primeira tarefa foi realizada com êxito. Os EUA só em 2013 conseguiram alterar a Ucrânia do modo multidirecional para o modo de ariete anti-russo, depois de terem gasto imenso tempo e recursos e de terem arranjado um regime com enormes contradições internas, incapaz de existir independentemente (sem um crescente apoio americano). Em vez de usarem os recursos ucranianos, os EUA foram forçados a gastar os seus próprios recursos para prolongar a agonia do Estado ucraniano, destruído pelo golpe.

A segunda tarefa não foi realizada devido a razões objetivas (independentes dos esforços russos). A elite ucraniana revelou-se totalmente inadequada, incapaz de raciocínio estratégico, de avaliação dos riscos e vantagens reais e a viver sob a influência de dois mitos.

Primeiro – o Ocidente ganharia qualquer confrontação com a Rússia e partilharia o espólio com a Ucrânia. Segundo – não era necessário nenhum esforço, exceto a inabalável posição anti-russa, para uma existência confortável (à custa do financiamento ocidental). Numa situação de escolha entre uma orientação para a Rússia e para a sobrevivência, ou de alinhamento com o Ocidente e com a morte, a elite ucraniana escolheu a morte.

No entanto, mesmo perante a opção negativa da elite ucraniana, a diplomacia russa conseguiu obter a máxima vantagem. A Rússia não se deixou afundar numa confrontação com o regime ucraniano, forçando Kiev e o Ocidente a um cansativo processo de negociação nos bastidores duma moderada guerra civil e excluindo os EUA do formato Minsk. Concentrando-se nas contradições entre Washington e a União Europeia, a Rússia conseguiu sobrecarregar financeiramente o Ocidente com a Ucrânia.

Em consequência, a posição inicialmente consolidada de Washington e Bruxelas desintegrou-se. Contando com uma guerra relâmpago político-diplomática, os políticos europeus não estavam preparados para uma confrontação prolongada. A economia da União Europeia não podia sustentá-la. Por seu turno, os EUA não estavam preparados para aceitar exclusivamente Kiev na sua folha de pagamentos. 

Hoje, após um ano e meio de esforços, a "velha Europa", que determina a posição da União Europeia, como a Alemanha e a França, abandonou totalmente a Ucrânia e está a procurar uma forma de estender a mão à Rússia, passando por cima dos países limítrofes pró-americanos (Polónia e bálticos) da Europa de Leste. Até Varsóvia, que costumava ser o principal "defensor" de Kiev na União Europeia, aponta abertamente (embora semioficialmente) para a possibilidade de dividir a Ucrânia, depois de ter perdido a fé na capacidade das autoridades de Kiev para controlar todo o país.

Na comunidade política e de peritos ucranianos cresce a histeria sobre "a traição da Europa". O oligarca Sergey Taruta, antigo governador da região de Donets (nomeado pelo regime nazi), afirma que o seu país só dura oito meses. O oligarca Dmitry Firtash (que tinha a reputação do "fazedor de reis" ucraniano) prevê a desintegração já na próxima primavera.

Tudo isto, calma e impercetivelmente, sem utilização de tanques e de aviação estratégica, foi conseguido pela diplomacia russa. Conseguido numa dura confrontação com o bloco dos países mais poderosos, militar e economicamente, partindo duma posição muito mais fraca e com os aliados mais peculiares, alguns dos quais não muito satisfeitos com o crescente poder russo.

Reviravolta no Médio Oriente 

Em paralelo, a Rússia conseguiu regressar ao Médio Oriente, manter e desenvolver a integração no espaço pós-soviético (União Económica Eurasiática), juntamente com a China alargar um projeto de integração eurasiático (Organização de Cooperação de Xangai) e iniciar, via BRICS, um projeto de integração global.

Infelizmente, o espaço limitado não me permite analisar em pormenor todas as ações estratégicas da diplomacia russa, nos últimos 20 anos (desde Primakov até ao dia de hoje). Um estudo abrangente ocuparia muitos volumes.

No entanto, quem quiser tentar responder honestamente a como a Rússia conseguiu, num prazo de 20 anos, sem guerras nem revoluções, passar do estado de uma semicolónia para o estado de líder mundial reconhecido, terá que notar as contribuições de muita gente da Praça Smolenska (onde se situa o Ministério dos Estrangeiros – NT). Os seus esforços não toleram espalhafato nem publicidade, mas sem sangue e sem vítimas colhem resultados comparáveis aos conseguidos por exércitos de muitos milhões, durante muitos anos. 
10/dezembro/2015

Ver também: 
  • Scènes de bagarre au couteau entre oligarques ukrainiens (Cenas de briga a facada entre oligarcas ucranianos)

    [*] Analista do Russia Today. 

    O original (em russo) encontra-se em oko-planet.su/... e a tradução em inglês emwww.globalresearch.ca/... . Tradução de Margarida Ferreira. 


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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