sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Catherine Shakdam / A batalha por Sanaa – a história de uma resistência

A batalha por Sanaa – a história de uma resistência

Catherine Shakdam*
03.Set.15 :: Outros autores
Ao que parece a Arábia Saudita prepara a ofensiva que espera seja final no Iémen. Pode ser que não lhe corra bem. E pode ser também que esta ofensiva contra o Iémen venha a ter repercussões que atinjam a própria “aliança” agressora, encabeçada pelo reaccionário regime feudal da casa Al Saud.

O Iémen chegou a uma encruzilhada decisiva nos seus combates contra a imperial Arábia Saudita. Enquanto comunidades, seitas e regiões forma lançadas umas contra as outras ao serviço da agenda de potências estrangeiras, a resistência encabeçada pelos Houthi poderá dispor ainda de alguns trunfos no seu combate. Com a Arábia Saudita, rica do seu petróleo, a postos para desencadear o que espera venha a ser o golpe final contra o movimento de resistência, os iemenitas estão a preparar-se para o que aí vem; com uma clara noção de que a cidade nortenha de Sanaa poderá em breve constituir o último bastião contra Al Saud, o terreno onde todas as batalhas serão ganhas ou perdidas.
Agora que o reino e os seus aliados regionais estabeleceram uma praça-forte no porto meridional da Aden, garantindo assim tanto um acesso ao mar como uma passagem para o interior, verifica-se um intenso fluxo de homens e equipamento militar – de dia para dia avançando mais longe no território do Iémen, de dia para dia desafiando a determinação dos combatentes da resistência iemenita. Mas, ainda que tenham efectivamente sido sofridas baixas, ainda que localidades e posições tenham sido abandonadas face ao poder de fogo da coligação encabeçada pelos sauditas, o Iémen está longe de estar derrotado.
A verdadeira guerra pelo Iémen, em última análise, terá lugar nas suas montanhas, um lugar que nenhum conquistador conseguiu dominar à sua vontade. E muitos o tentaram: dos romanos aos otomanos, nenhuns conseguiram submeter os filhos de Hamdan. Agora, de novo, as tribos do norte do Iémen poderão constituir um desafio intransponível, mesmo perante a potência combinada da riqueza de Riade e do poder militar dos EUA.
A história recorda que o Iémen não encara invasores com simpatia.
E enquanto a maioria dos media têm sido pressurosos em apresentar esta guerra contra a República do Iémen – a única democracia na Península Arábica – como uma campanha de libertação contra a perversidade dos Houthis, segundo a premissa de que estes procuraram junto do Irão apoio e orientação política, o veredicto ainda está em aberto no que diz respeito ao que possam eles ter feito a ponto de merecerem ser aniquilados.
Em apenas cinco meses o Iémen já foi testemunha de uma devastação maior do que a que a Síria sofreu em quatro anos. Poderíamos até arriscar dizer que se os “Aliados” tivessem demonstrado a mesma determinação em atacar o ISIS que o reino tem tido em erradicar os Houthis o mundo seria um lugar bem diferente. Mas é evidente isto implicaria que o terror fosse o verdadeiro inimigo, e não um mero álibi.
Embora os Houthis têm sido demonizados até à náusea tanto devido à sua filiação religiosa no Islão Xiita como ao seu desejo de ver emergir no Iémen uma democracia popular, uma democracia ao serviço do povo e não uma oligarquia, eles estão longe de estar sós nesta luta.
As tribos do norte reuniram-se em seu apoio, disponibilizando tanto as suas armas como a sua influência política – todas partilhando a determinação em romper com o legado imperial de Al Saud, todas inteiramente conscientes de que, a verificar-se a queda do Norte do Iémen a ameaça do radicalismo, agora adormecida, despertaria um imparável monstro sobre o Sul da Arábia.
Embora cuidadosamente censurados pela acomodatícia imprensa ocidental, relatórios vêm confirmando que a Al-Qaeda tem preparado um regresso às províncias do sul do Iémen, por coincidência articulando o seu avanço com o da coligação de Al Saud.
Com Aden arrumada, Sanaa é uma cidade à espera da guerra – barricada por detrás da muralha das montanhas envolventes, com as trincheiras a postos.
E embora Riade continue a fazer chover chumbo sobre a cidade capital, na esperança de destruir os depósitos de armamento e de suster o fluxo de combatentes em direcção à cidade, Sanaa nunca abrirá as suas portas a Al Saud; a sua gente irá resistir e lutar, defender e proteger – até ao limite.
Porque se Sanaa cair, o Norte do Iémen arderá e com ele o seu povo, a sua herança, a sua história…A advertência da Arábia Saudita de que perseguirá e queimará todos os que ousem desafiar a sua lei está gravada a fogo no pensamento do povo. Esta luta é pela sobrevivência.
E se até ao momento a chamada coligação tem evitado o confronto com a aliança dos Houthis onde ela se implanta com mais força, é porque compreende bem o poder das tribos, a legitimidade que elas proporcionam ao apoiar um campo ou o outro.
Fontes no Iémen confirmaram já que o presidente Hadi está a tentar engendrar uma aliança tribal contra a resistência, consciente de um choque frontal apenas aprofundaria a divisão do país e conduziria, potencialmente, a uma erosão da influência do reino e da sua posição na região. Para uma teocracia que se assume tão poderosa e magnífica, o movimento insurreccional do Iémen tornou-se ao mesmo tempo um risco perigoso e um embaraço.
E, o que é ainda mais incómodo para Riade, tem inspirado outros a revoltarem-se contra o Al Saud teocrático.
Se o reino engendrou a derrota do Norte do Iémen na base da compra de alianças e de favores políticos, os Houthis e os seus aliados têm andado igualmente ocupados em organizar um grande movimento de resistência – um movimento que não conheça fronteiras.
O Iémen pode estar em ruínas, mas o seu povo não o está.
Com nada a perder senão a própria liberdade, as tribos do norte do Iémen estão determinadas seja ao que para assestar golpes mortíferos no reino, a começar pela ruptura da via de tráfego de petróleo de importância mundial ao longo do estreito de Bab Al Mandab, e por ataques do lado de lá da fronteira com a Arábia Saudita.
Se os sauditas detêm, indiscutivelmente, a vantagem militar, graças a mais dinheiro e a superior tecnologia, a resistência domina pontos de pressão geoestratégica cruciais. A resistência iemenita não será facilmente derrotada nas suas praças-fortes – não o será porque dispõe de praticamente absoluto apoio popular, não será porque a sua posição face ao reino se tornou a posição de um país inteiro contra a tirania.
Neste confronto de vontades, o Iémen pode ainda sair por cima.
Apesar da sua encenação política e das suas grandiosas declarações, a determinação da Arábia Saudita contra o Houthis começa a vacilar. Tanto assim é que foram já discutidas perspectivas de uma secessão entre norte e sul, de modo a evitar o arrastamento de uma guerra indecisa – um meio para o reino estabelecer um estado sunita satélite e manter os Houthis enclausurados entre dois regimes sunitas hostis, e ainda clamar vitória.
Só que, mais uma vez, isto poderia vir a revelar-se catastrófico para o reino, uma vez que o Iémen do sul tem sido um viveiro de instabilidade tribal e de ambições em disputa.
Pode ser que em breve venhamos a registar que a guerra da Arábia Saudita contra o Iémen constituirá um novelo que a enreda a ela própria.
*Catherine Shakdam é analista política e comentadora do Médio Oriente particularmente centrada nos movimentos radicais e no Iémen. Tem artigos publicados em Foreign Policy Journal, Mintpress News, the Guardian, Your Middle East, Middle East Monitor, Middle East Eye, Open Democracy, Eurasia Review e muitos outros.
Publicado a 28 de Agosto de 2015
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