segunda-feira, 10 de agosto de 2015

O dinheiro que corrompe todas as coisas

O dinheiro que corrompe todas as coisas

O texto abaixo foi escrito pelo professor Christian Dunker* e originalmente publicado no site da revista Fórum (www.revistaforum.com.br):
“Daí que até hoje muitos pensem que segurança e proteção sejam bens que podemos comprar com o dinheiro e não sentimentos que precisam ser socialmente construídos e partilhados. Este retrato conjugal foi descrito por Freud, no longínquo ano de 1911, como um projeto necessariamente fadado à degradação. O homem vê sua linda princesa transformar-se em um dragão de ressentimento, retorna então para a mesa do bar, onde encontrará consolo semelhante ao que a esposa busca no amor das crianças. Quando questionado em sua virilidade ou parca contribuição para a vida doméstica responderá com violência. Sua parte está feita.”
Christian Dunker
Christian Dunker
Durante muito tempo a divisão social do trabalho impôs uma diferença marcante no Brasil. Enquanto nas classes altas o homem devia trabalhar e a mulher tomar conta da casa, entre os pobres, ambos trabalhavam, inclusive crianças, e o quanto antes. Estabeleceu-se então uma conhecida relação conjugal baseada na tutela, que deu cor e forma à servidão feminina. A equação doméstica, assim configurada, prescrevia uma espécie de contabilidade infinita baseada no fato de que dinheiro é poder. Um tipo e poder que compra outros poderes. Diante desta forma de poder erguia-se uma resistência espontânea, como que um último reduto defensivo, uma estratégia sem estrategista: o sexo. A obrigação do homem, trazer dinheiro para casa, contrapunha-se à resistência feminina, que desde então será condenada quando parecer “fácil demais”. Pai protetor e a mãe nutriz são as figuras freudianas desta troca, pela qual entregávamos a autonomia em troca de proteção. Recobrindo esta troca hobbesiana surge a moral do amor infinito, que veio a estabelecer que quem ama perde, logo, quem ama mais perde mais. Sacrifício, inequidade devocional e vulnerabilidade tornaram-se assim a gramática compulsória do amor que uma mulher deve praticar. Daí que até hoje muitos pensem que segurança e proteção sejam bens que podemos comprar como dinheiro e não sentimentos que precisam ser socialmente construídos e partilhados. Este retrato conjugal foi descrito por Freud, no longínquo ano de 1911, como um projeto necessariamente fadado à degradação. O homem vê sua linda princesa transformar-se em um dragão de ressentimento, retorna então para a mesa do bar, onde encontrará consolo semelhante ao que a esposa busca no amor das crianças. Quando questionado em sua virilidade ou parca contribuição para a vida doméstica responderá com violência. Sua parte está feita. Em casos específicos lhe parecerá natural que a mãe de seus filhos permaneça pura como uma santa enquanto ele faz valer o valor do dinheiro nos prostíbulos, formais ou informais. Dependente, tiranizada e espoliada por seu marido, não lhe ocorreria outra coisa à mulher senão transmitir o legado da lei do mais forte aos seus filhos … e filhas.
Muitos dirão que este retrato do laço conjugal ficou para trás. Outros tantos nos lembrarão de que ele se aplica com muita dificuldade ao casamento homoafetivo, às famílias monoparentais e às combinações crescentes entre filhos, enteados, madrastas, sem falar na típica família brasileira formada pela mãe e seus filhos. Uma posição lúcida perguntará afinal por quê precisamos de um conceito de família dotado de valência normativa? Já no século XVIII Kant descreveu o casamento como um contrato paradoxal, que inverte e combina a noção de justiça que usamos para regular a relação entre pessoas e o direito que estabelecemos acerca do bom uso das coisas. Neste regime o corpo do outro é tratado como uma quase-coisa. É assim também que os bens são tematizados para efeito de herança: como quase-pessoas.
Picketti mostrou, aparentemente de modo irretorquível, e contra os estatísticos americanos, que a herança é mais forte que o trabalho. Este efeito quase-pessoa do casamento é a fonte de um desequilíbrio que já em 2016 levará os 1% mais ricos do mundo a deter mais dinheiro do que os outros 99% somados1. Poderia-se imaginar que este 1% é majoritariamente dinheiro masculino, que tende a se distribuir mais equitativamente, na medida em novas mulheres ricas se somam às antigas mulheres pobres trabalhadoras. Mas, pelo menos no Brasil, isto não é verdade. Uma série de estudos está tentando entender porque a participação de mulheres em cargos de direção e poder cresce, mas cresce só até certo ponto, depois disso tende a se estabilizar, deixando, por exemplo, em cargos altíssimos, como os boards decisórios de grandes empresas uma proporção não compreensível de homens2. Em cargos gerenciais há um dilema importante relativo à compatibilidade entre trabalho e casamento, particularmente quando estão envolvidas viagens e jornadas mais extensas de trabalho. Isso poderia ser ajustado por meio de legislação protetiva ou de ações afirmativas, mas o problema parece ser mais insidioso e toca às raízes do retrato que apresentei anteriormente, a saber, o papel corruptor do dinheiro nas relações humanas.
Freud fez uma de suas observações clínicas mais precisas de modo quase lateral em um de seus artigos sobre a técnica da psicanálise: a forma como alguém lida com dinheiro é a forma como ele lida com a sexualidade. Uma profecia clínica ainda em vigor, para o bem e para o mal. Isso é óbvio para atitudes mais óbvias como generosidade ou avareza, controle ou dissipação. Aliás, em muitas línguas, as próprias palavras que usamos para designar aspectos da sexualidade, são derivações metafóricas ou eufêmicas do vocabulário econômico: Comertz (comércio), em alemão se diz para a troca sexual, o mesmo para intercourse em inglês e também o nosso prosaico transar, que alude a transação.
Lembremos agora que o retrato maldito, que nos surge hoje quase como anti-modelo do laço conjugal desejável, formou-se na matriz romântica que evoluiu ao longo do século XIX, determinando nosso entendimento clássico do casamento (que é bem mais recente e classe-específico do que poderíamos imaginar) como uma solução para duas séries divergentes: o desejo e o amor. Notemos também como o dinheiro aparecia como vilão exterior, que não devia ter nenhuma relação com a lógica de nossa escolha amorosa, aliás, sua interveniência, ainda que indireta, era suficiente para colocar em dúvida a pureza e a autenticidade da escolha amorosa. Formou-se assim uma espécie de aliança entre o laço conjugal e a antiga teologia religiosa que afirmava, insistentemente, o caráter corruptor ou salvacionista do dinheiro, seja ele de fonte impura do desejo em forma de cobiça (catolicismo) ou fruto do merecimento pelo amor ao trabalho (protestantismo). Ou seja, o mesmo discurso que amaldiçoava o dinheiro reprimia o sexo, o mesmo discurso que santificava o amor materno, privava a mulher do dinheiro.
Um grande desafio para os clínicos de hoje é uma espécie de epidemia de casamentos desfeitos, simplesmente porque não parece possível que um homem sobreviva a uma mulher que ganhe mais que ele ou que o sustente. Aparentemente nossa cultura não conseguiu criar dispositivos simbólicos capazes de nos fazer admirar um homem que não se coloque como autônomo ou que se apresente como dependente de uma mulher. Este homem, ainda que pouco viril ou menos macho, não pode prescindir de seu falo cifrado. Esta mesma cultura, tantas vezes descrita como hedonista e destituída de opressão sexual, também não parece permitir que uma mulher suporte ser amada, pelo e com o seu dinheiro. Para ela, ele ainda não é um afrodisíaco.
As variações deste problema atingem casais homossexuais, famílias estendidas e quase todas as outras modalidades de união, comunhão ou vida comum. Ao que parece não estamos em uma situação em que a história nos teria ensinado que há uma forma feminina (ou pelo menos não masculina) de lidar com o poder e o dinheiro de tal maneira que a injustiça e a inequidade seriam mitigadas por uma espécie de saber acumulado pela experiência histórica. Sem isso a inversão entre opressores e oprimidos parecerá como única solução. Sem isso a obsessão pela procura da vítima perfeita, como anti-modelo, nos afundará em uma espécie de lei social do masoquismo. O ressentimento social, neste caso expresso como ressentimento de gênero, parece impor sua força apesar das exceções e das disposições em contrário. Se o lado quase-pessoas do casamento parece ter ficado visível demais quando pensamos na transmissão e acumulação de patrimônio, ainda poucos e fez quanto aos destinos do lado quase-coisa do laço conjugal. Não basta apelar para uma nova idealização do tipo, o verdadeiro amor supera as diferenças econômicas. Para tratar este problema clínico e social precisamos urgentemente inventar uma nova maneira de experimentar relações de propriedade. Uma maneira na qual o sentimento de propriedade não se reduza à posse, uso e abuso, nem esteja baseado apenas em uma perversão da lógica do contrato.
Em tempos de crise vindoura onde desempregos se avistam, parece profundamente injusto que grandes amores ou sólidas e estáveis uniões se desfaçam pela mera interveniência deste elemento corruptor de todas as coisas, o dinheiro. E quer excluí-lo da equação da vida é quase tão tolo quanto os que quiseram nos impor uma vida sem sexualidade.
*Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor livre-docente do Instituto de Psicologia da USP, analista membro do Fórum Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. 
1# http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/01/150119_riquezas_mundo_lk
2#Belmonte, R.L.C. (2014) Quotas para mulheres em Conselhos de Administração de empresa, à luz da Teoria Feminista do Direito. Faculdade de Direito da USP.
jornal   A Verdade
Anterior Proxima Inicio

0 comentários:

Postar um comentário