sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Khadim Ndiaye / Francofonia: imposição do idioma é continuidade de projeto colonial francês na África

Francofonia: imposição do idioma é continuidade de projeto colonial francês na África

Para filósofo senegalês, a contínua imposição da língua francesa sobre povos africanos é prosseguimento do projeto colonial de exploração das riquezas africanas e sufoca desenvolvimento autônomo do continente
The Commonwealth / Flickr

Kamalesh Sharma, da Commonwealth, organização de países ou ex-colônias do Império Britânico, e Abdou Diouf, então secretário-geral da Organização Internacional da Francofonia, em Paris em 2011
Há uma crença persistente que pretende que o francês seja considerado uma língua africana. Esta crença foi reforçada pelas palavras do escritor e político senegalês Léopold Senghor. Confessando ele próprio pensar em francês – “Eu penso em francês; eu exprimo-me melhor em francês do que na minha língua materna” – o poeta-presidente dava como razão da “africanidade” do francês o fato de “a elite” senegalesa pensar em francês e exprimir-se melhor nessa língua: “o francês já não seria efetivamente uma língua estrangeira, dada a condição de extrema aculturação que teria levado as elites senegalesas a pensar em francês e a exprimirem-se melhor nesta língua do que nas suas línguas maternas, repletas, no fundo, de ‘francesismo’ nas cidades”.
É verdade que pessoas que estiveram longamente em contato com o francês podem pensar que esta língua é parte integrante de si e que, por isso, não seria verdadeiramente uma língua estrangeira. Este sentimento é acentuado pelo fato desta língua, ainda que minoritária, ter sido considerada língua oficial na maior parte dos países ditos francófonos da África. Esta situação é fruto de uma inconsciência que foi sabiamente mantida pela administração colonial e pelas elites francófonas locais.
Linguisticamente, o francês é uma língua estrangeira à África. Pertence à família das línguas românicas e não tem, portanto, nenhum parentesco com as línguas africanas, nem morfológica nem estruturalmente. Historicamente, o francês impôs-se na África pela colonização. Geograficamente, milhares de quilômetros separam o berço do francês dos países africanos e esta língua não conseguiria, sociológica e psicologicamente, exprimir o “eu profundo” dos africanos. Não, o francês não conseguiria exprimir adequadamente o gênio do povo serer, nativo da África Ocidental, a visão do mundo dos Fang, que vivem entre Camarões, Gabão e Guiné Equatorial, ou dos povos do Saara. 
A não ser na esfera da nostalgia, e sob o domínio da pura “emoção” tão querida ao poeta Senghor, o francês não pode, em rigor, face ao que ficou demonstrado, ser considerado uma língua africana. Tomar o francês pelo que é, ou seja, uma língua estrangeira, permitirá, em parte, desvendar o que faz o fracasso da sua didática na maior parte das vezes na África.
Wikimedia Commons

Campus da Agência Universitária da Francofonia em Antananarivo, capital de Madagaskar, ilha na costa leste da África
Os africanos ditos francófonos fizeram de uma língua de colonização uma língua elitista, uma língua de prestígio, de promoção social e que dá acesso ao poder. Bem aventurado aquele que fala sem sotaque e trabalha para preservar a “pureza” do francês. No seu tempo, o presidente Senghor extasiava-se com o fato de, na Rádio Dakar, as emissões francesas serem de uma língua mais pura que as emissões em línguas vernáculas. “Melhor – dizia ele – nem sempre é fácil distinguir as vozes dos senegaleses da dos franceses”.
O francês é a língua dos “eleitos”, daquela casta de privilegiados cientes do poder que lhes confere a língua. Neles, a sintaxe ultrapassa muitas vezes a semântica e presumem que quem a fala bem domina o saber. O africano francófono chega mesmo a esforçar-se mais por cuidar da forma do que por ter em conta o seu interlocutor. Este excesso de cuidado com a língua levou Paulin Hountondji, filósofo do Benim, a falar de “comunicação truncada”. Se a “língua vulgar” aproxima as pessoas, para o “colonizado”, diz o filósofo, “o Outro não é o interlocutor, é a linguagem”. Sobrevalorizada, esta linguagem é “vivida como uma opacidade, como uma matéria rebelde na qual é preciso concentrar todos os esforços desviando-os de qualquer outro objeto”. É por isso que “o comportamento linguístico do africano quando se exprime em francês, tem todas as características de uma neurose”.
Aliás, nos países africanos ditos francófonos acontece uma coisa curiosa: fala-se de problemas africanos em textos escritos dirigidos, na realidade, a um público não africano. Dado que neste caso o francês é minoritário, há uma espécie de exteriorização que levou o escritor senegalês Boubacar Boris Diop a retomar a pergunta crucial do filósofo francês Jean-Paul Sartre: “Para quem escrever?” O escritor senegalês interroga-se: “para quê escrever romances que as pessoas vão ler na França ou na Bélgica e nunca no vosso país? Nos meus romances, eu escrevo que a África não está bem. É verdade. Mas a quem devo contar isso? Aos estrangeiros ou aos africanos que são quem tem de mudar a situação? Nós, escritores em língua francesa –  eu, em parte – remetemos para o mundo a imagem de uma África corrupta e imatura. Imaginemos que seja verdade. Pois bem, escrevamo-lo numa língua que os africanos compreendam para que possam mudar de orientação”. 
O que o francófono inculca nos africanos é o culto da língua francesa, um amo sem limites à língua de Molière. O escritor camaronês Mongo Beti, pasmado com esta exigência excessiva, esbravejou: “Mas, afinal, o que é este ato de fidelidade ou de amor à língua francesa que se espera de nós? Por que havia eu de festejar o francês? Por que escrevo em francês? Sendo habitante dos subúrbios, pego meu carro todas as manhãs para ir trabalhar no centro da cidade. Quem ousaria pedir-me que fizesse uma declaração de amor ao meu carro?”
Seguindo o mesmo pensamento, o escritor senegalês Cheik Aliou Ndao, que muito cedo compreendeu a “orquestração”, foi um pouco mais longe que Beti ao distinguir “herança” e “acidente histórico”. “Não escrevemos em francês por amor ou por uma escolha deliberada. Usamos a língua de Molière por acidente histórico. A francofonia não é a nossa herança, porque nosso eu profundo exprime-se nas nossas línguas maternas. Escrever numa língua de empréstimo é aceitar participar de uma literatura de transição”.
zanbard / Flickr

Protesto em Paris em outubro de 2011 contra a intervenção militar francesa na Costa do Marfim
Longe de ser esta “comunidade espiritual” de que fala Senghor, a francofonia é o prosseguimento, em forma adocicada, do projeto colonial de afirmação dos valores da civilização da França. É a caixa de graves a partir da qual se envia ao mundo o eco da “grandeza da França”. É a oficina a partir da qual deve ser fabricada a pílula do esplendor do francês.
Além de pedir aos africanos que declarem o seu amor à língua francesa, a francofonia gostaria que eles permanecessem no papel de executantes que participam na sua expansão pelo mundo. A francofonia espera dos africanos francófonos que sejam zelosos propagadores da língua e da influência francesas; uma preocupação, porém, nos antípodas das suas prioridades. Com a francofonia, procura-se perpetuar o que era o projeto colonial e que o tenente Paulhiac exprimiu em 1905, com incrível precisão: “A nossa língua implantar-se-á pela força das coisas, e não o esqueçamos: é um dos meios mais seguros de fazer perpetuar o progresso nas nossas colônias, como será a única coisa que nos permitirá conservar para sempre as próprias colônias… é na nossa língua que residirá a nossa força, como há de ser, mais tarde, a base da nossa indestrutível influência nos países que tivermos moldado à nossa imagem”.
Em outros termos, é uma forma sutil de manter na sua alçada os países africanos ditos francófonos – alguns diriam “domínio” – da França. O econômico deverá ser o prolongamento natural do cultural. A francofonia deverá ser o pretexto para o domínio econômico. Os objetivos expressos com clareza pelo antigo secretário francês do Ministério dos Negócios estrangeiros, Yvon Bourge, em 1967, em plena Assembleia Nacional francesa, não se alteraram uma vírgula: “O primeiro objetivo do meu Departamento é o de favorecer a penetração da língua e da cultura francesas nos países da África. O segundo objetivo a que nos propusemos é de ordem econômica: a manutenção e o desenvolvimento dos interesses comerciais e industriais franceses constituem igualmente uma preocupação constante da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros encarregada da Cooperação. Digo-o sem vergonha. Isso, aliás, nada tem de ilegítimo nem de sórdido. A cooperação não é um empreendimento interessado no sentido egoísta do termo, mas não pode tratar-se de esbanjamento nem de prodigalidade…”
Ophelia Noor / Flickr
Enquanto o jovem africano em zona francófona forjou geralmente as suas primeiras experiências afetivas e cognitivas no contato com a mãe e os próximos na sua língua materna, o seu desenvolvimento “normal” é bruscamente interrompido pela imersão em turmas onde só se fala francês. Ele então tem de dominar a sintaxe – por vezes, à custa de humilhações (como o uso do símbolo das “orelhas de burro”, por exemplo, que aterrorizou gerações inteiras de alunos) – antes de tentarem inculcar-lhe os primeiros segmentos de conhecimentos.
Ninguém exprimiu melhor e tão pertinentemente este atraso da criança africana para adquirir o saber como o historiador e antropólogo senegalês Cheikh Anta Diop: “No mesmo dia em que o jovem africano entra na escola, ele já tem discernimento suficiente para apreender o segmento de realidade contido na expressão: um ponto que se desloca gera uma linha. Mas, como escolheram ensinar-lhe esta realidade numa língua estrangeira, será preciso esperar, no mínimo 4 a 6 anos, para que tenha o vocabulário e a gramática suficientes, isto é, um instrumento de aquisição do conhecimento para que possam ensinar-lhe aquela parcela de realidade”. O que não acontece com a criança francesa que aprende diretamente na sua língua. Esta parte do conhecido (a sua língua materna) para o desconhecido (as outras línguas e as matérias novas que lhe são ensinadas), ao passo que a criança africana esbarra no desconhecido, num espaço em que a realidade está encoberta “por uma membrana estanque que a separa do espírito” e em que “a memória chega a substituir a razão”.
Memorização e superficialidade constituem o destino cognitivo do jovem africano francófono. Mais tarde, ele virá engrossar a massa dos “papagaios que repetem” e dos “macacos que imitam”, para retomar as palavras do professor Amady Aly Dieng da Universidade de Dakar, capital do Senegal. Este não-saber, resultante da memorização excessiva é, aliás, o que sobressai das palavras de Louis Vignon, antigo membro da Academia das Ciências Morais e Políticas de França que, depois de ter evocado os escritos de Rousseau, de Montesquieu, os livros de histórias e de política ocidentais, afirma, falando dos colonizados, que “tudo isso retido pela memória, mal compreendido, mal digerido por cérebros cujos pais não o tinham pensado e nem o podiam pensar, de certa maneira envenenou-os”.
Na verdade, o francês, considerado como língua exclusiva de ensino, obriga o jovem africano a fazer um duplo esforço “para assimilar o sentido das palavras”, diz Diop, “e depois, um segundo esforço intelectual para aceder à realidade expressa pelas referidas palavras”. Se acrescentarmos a isso o fato da estrutura do francês ser diferente da das línguas africanas, compreende-se a razão pela qual uma plêiade de jovens cérebros é deixada à deriva pelo sistema. Compreende-se, sobretudo, a razão pela qual ainda hoje se continua a falar do “baixo nível” e da “dificuldade de aprendizagem do francês”. O governo francês está de tal modo consciente deste problema que financia com até cerca de 9,1 milhões de euros – por intermédio da Organização Internacional da Francofonia, da Agência Internacional da Francofonia, da Agência Universitária da Francofonia, da Agência Francesa para o Desenvolvimento e do Ministério francês dos Negócios Estrangeiros e Europeus – o programa ELAN-Afrique (Escola de Línguas Nacionais na África) em oito países da África para, dizem, “remediar o insucesso escolar devido à dificuldade de aquisição da língua francesa”.
Por conseguinte, uma nova pedagogia, que se apoie numa política linguística inteligentemente concebida é, mais do que nunca, necessária aos países africanos. Esta nova política, que voltaria a dar dignidade às línguas nacionais, deve necessariamente abrir caminho frente àquela que era tão grata ao presidente-poeta, do francês como língua principal para que o Senegal não chegue, dizia ele, “em atraso chegada do ano 2000”.
Também é imperiosa uma nova relação do locutor africano com o francês. O francês deve, doravante, ser considerado como aquilo que é: uma língua estrangeira imposta pela colonização cuja sobrevalorização é absurda. O francês deve deixar de ser para os africanos um instrumento de mistificação e de alienação e tornar-se numa simples ferramenta de aquisição de conhecimentos. Nisso consistirá a sua desmitificação; nisso consistirá a sua bem sucedida descolonização e humanização.

Khadim Ndiaye é flósofo e pesquisador sobre temas relacionados a história antiga e colonial e à problemática cultural na África.
 
Tradução:  Maria José Cartaxo
Artigo originalmente publicado no site BUALA, que publica textos sobre temas culturais contemporâneos que envolvem Portugal, África e Brasil. 
 (Opera Mundi)
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