O Inverno vem aí...– Le capital fictif: Comment la finance s'approprie notre avenir, nova obra de Cédric Durand
por Jacques Sapir
Uma análise precisa Os dois primeiros capítulos desta obra são consagrados às práticas da finança, naquilo que têm de mais escandalosas e também de mais reveladoras. No capítulo primeiro, depois de descrever as derivas individuais dos actores (e foram numerosas), ele mostra que estas têm pouco a ver com a cupidez pessoal, mas devem muito ao quadro sistémico no qual puderam ter lugar. É o caso de Jérôme Kerviel, tanto vítima como culpável, preso a uma lógica que o ultrapassava. Os diferentes escândalos que revê iluminam o cinismo, e também a dimensão do sistema, destas derivas financeiras. Deste ponto de vista, este livro é uma explicação rigorosa dos comportamentos que J. Wedel havia descrito na sua obra famosa sobre as derivas dos actores ocidentais da transição [4] . Sabe-se que este escândalo explode em 1998 com uma força temível e que dá lugar a um testemunho que convém reler de um dos responsáveis da CIA diante do Congresso dos Estados Unidos [5] . Num certo sentido, o escândalo da falência do fundo de investimento LTCM em 1998 prefigurava bem derivas da crise de 2007 [6] . Mas disto Cédric Durand está perfeitamente a par, pois defendeu há mais de dez anos uma tese notável (e notada) sobre a siderurgia russa na transição. Esta constatação leva-o a interrogar-se sobre a responsabilidade dos economistas. Há naturalmente responsabilidades imediatas e ele mostra isso ao sublinhar o papel justificador que tiveram certas teorias em relação à desregulamentação muito interessada da finança, desregulamentação de que se sabia desde os anos 1990 ser portadora de crises graves [7] . Deste ponto de vista, pode-se lamentar que não esmiuce até uma análise particular a autores como Eugene Fama cuja teoria da "eficiência dos mercados" desempenhou um papel extremamente perverso no processo de liberalização da finança [8] . Mas é claro que esta responsabilidade deve-se também à utilização de uma metodologia profundamente irrealista que, como escrevia um epistemólogo reputado, Daniel Hausman [9] leva os economistas a negarem o impacto do ambiente sobre as preferências individuais: "A complacência generalizada que a maior parte dos economistas demonstra a propósito das pretensões da teoria económica e da sua má vontade quando se trata de considerar seriamente hipóteses psicológicas importantes é difícil de defender. A atracção por uma ciência separada é profunda, mas centrar-se sobre uma tal estrutura não se justifica e, ao assim fazer, cria barreiras não razoáveis ao progresso teórico e empírico" [10] . Estes procedimentos conduzem a privilegiar a ideia de uma auto-regulamentação da finança, às chamadas regras prudenciais. Mas estas regras são uma ilusão profunda [11] . Resta analisar a lógica da instabilidade financeira. No segundo capítulo da obra ele mostra toda a pertinência das análises de H.P. Minsky [12] , mas também mostra que as mesmas estão incompletas. Com efeito, se bem que a análise pós keynesiana de Minsky seja de uma formidável eficácia descritiva, ela se inscreve num contexto particular, o do fim dos anos 1970 e dos anos 1980. Minsky não viveu tempo suficiente para ver desdobrar-se toda a lógica da financiarização da economia. É isto que leva Cédric Durand a desenvolver a ideia de que a finança e a financiarização actual das economias são um sintoma do Outono do capitalismo. Como diz um dos heróis da série Game of Thrones, vem aí o Inverno... Uma análise rigorosa Nos capítulos seguintes, Cédric Durand explicita e desenvolve o conceito de "capital fictício". Ele faz primeiramente a genealogia, recordando que o conceito foi utilizado tanto por Hayek como por Marx, ainda que estes dois autores dessem, não se pode duvidar, definições diferentes mas sobretudo tirassem implicações quase opostas. O "capital fictício", para Cédric Durand que retoma uma grande parte da definição de Marx, é a "pré-validação" do capital, noção que na realidade está quase no cerne desta obra. Este ponto exige atenção e se se pode fazer uma (pequena) censura à obra é por não explicitar noções que estão a montante do conceito de "capital fictício" e que permitem melhor compreender o seu sentido. Marx raciocina efectivamente numa economia com três categorias de agentes, o que está igualmente de acordo com múltiplos autores anteriores a ele como Say, Ricardo ou Sismondi. Nesta economia há os capitalistas que detêm o capital (sob forma física mas também sob forma monetária), os empresários e os assalariados. Os empresários devem tomar emprestado o dinheiro (capital monetário), transformá-lo em mercadorias para produzir outras mercadorias, depois vender estas mesmas mercadorias (retransformando o capital físico em capital monetário) e com o produto desta venda pagar aos trabalhadores, reembolsar (com os juros) os capitalista e pagarem-se finalmente a si próprios. É a isto que se chama o ciclo: Agente----> Mercadorias----> Dinheiro . Mas nesta dupla transformação jaz uma dupla incerteza radical. Os empresários, tendo tomado emprestada a soma inicial fizeram-no na base de um cálculo ex-ante. Nada prova que o resultado ex-post deste cálculo venha a ser o bom. Esta distinção entre os cálculos ex-ante e as verificações ex-post é fundamental se se quiser compreender a instabilidade intrínseca da economia capitalista [13] . A tomada de empréstimo inicial representa na realidade uma pré-validação das escolhas económicas do empresário. Da mesma forma, ele fez um segundo cálculo ex-ante respeitante as condições de vendas da sua produção. É evidente que ele terá necessidade de contratar um novo empréstimo (se vender a si próprio sua produção) durante a duração do ciclo de venda, ou seja, terá de dar crédito a um distribuidor (o famoso "crédito a três meses") que acarretará então o risco da realização desta produção. Nos dois casos, será preciso ainda pré-validar o valor do capital-mercadoria durante o tempo em que este capital se torna outra vez capital monetário. Como se vê, a pré-validação está no próprio cerne dos processos do capitalismo. Mas, na realidade, e é aqui que se situa a novidade da obra de Cédric Durand, há um basculamento neste mecanismo. Com efeito, a pré-validação é na realidade uma pseudo-validação que, se for mal concluída, deve ser paga "até o último tostão" pelo empresário. Não é senão no capitalismo financiarizado contemporâneo, que é o objecto real do livro, que esta pseudo-validação se transforma numa pré-validação quase real, quer seja pela acção dos bancos centrais quer pela do governo. Isto equivale a dizer que o capital "pseudo-validado" ex-ante também o será – numa grande maioria os casos e isto independentemente da conjuntura económica – ex-post. Contudo, este deslizamento da pseudo-validação para uma quase certa pré-validação tem um custo: o da propagação de um imenso sector financeiro que vai então "bombar" literalmente o valor produzido na produção, seja directa ou indirectamente. Cédric Durand identifica quatro formas neste processo:
Sobre este último ponto Cédric Durand nota muito justamente que, ao contrário do que havia previsto a teoria neo-clássica, não foi a "desintermediação" que prosperou no processo de financiarização, mas ao contrário uma intermediação muito mais opaca pois realizada fora dos bancos (mais ou menos fiscalizados) pela Banca Sombra (Shadow Banking) , a qual muitas vezes é igualmente a intermediária obrigatória e natural destes bancos, o que a crise de 2007-2008 provou amplamente [14] . Esta proliferação de sociedades não-regulamentadas coloca igualmente um problema temível às autoridades públicas. Aqui se vê bem porque a ideia de uma regulamentação prudencial é uma ilusão e porque se impõem regulamentações coercivas. Sobre estes pontos (assim como sobre muitos outros), a traição dos socialistas franceses é total e clama uma sanção implacável.
A desmaterialização do capital O capital fictício plana doravante como uma nuvem sombria acima da economia. Ele trava os processos de investimento e deprime ao mesmo tempo o consumo, produzindo estas economias de desemprego em massa que se vê a desenvolverem-se nos países ocidentais. A amplidão deste desemprego nos traz de volta portanto à situação descrita pelos grandes autores socialistas do princípio do século XX. Isso é muito correctamente notado por Cédric Durand. Ele também mostra como o aparelho produtivo se transforma sob a pressão da globalização financeira, ponto que eu já havia descrito na Démondialisation [15] e em que nossas análises são convergentes. Cédric Durand acrescenta além disso seu conhecimento fino das "cadeias de valor" que decorre dos seus estudos pós-doutorais consagrados em parte à grande distribuição e ao seu desenvolvimento nos países emergentes. Ele mostra de modo engenhoso como as empresas, para não se verem esvaziar do valor produzido, são obrigadas a internalizar em parte o processo de financiarização e a desenvolver ramos financeiros cada vez mais importantes. Neste mundo em que dominam os rentistas – e teria sido bom que ele fizesse uma utilização mais ampla do conceito de renda, e inclusive nas suas diferentes formas, pois há aqui uma pista a escavar – chega-se logicamente a processos de deflação generalizados. Ele também mostra até que ponto as lógicas monetárias, e é evidente que o Euro delas parte, desempenham um papel essencial neste processo de financiarização e de desmaterialização. Deste ponto de vista, e sabe-se a sua opinião a respeito, uma saída do Euro impõe-se como acto fundador de um processo de re-apropriação dos processos produtivos. Assim, o que Cédric Durand nos apresenta é uma obra de grande importância, tanto descritiva como teórica,. A descrição dos processos de pré-validação constitui um ponto central. Ela sugere uma analogia com a economia de tipo soviético, que eu próprio havia analisado como um sistema onde dominava a pré-validação do capital [16] , mas lá subjugando a finança ao sistema produtivo e ao Estado. Isto mostra que os dois sistemas não são senão a imagem invertida um do outro e pertencem certamente à mesma categoria das economias capitalistas. O fim da URSS deixa pressagiar o do capitalismo financiarizado. Mas este fim provavelmente será mais trágico do que foi o desmantelamento do sistema soviético. Sim, o Inverno vem aí...
28/Dezembro/2014
[1] C. Durand (sous la direction de), En Finir avec l'Europe , Paris, La Fabrique, mai 2013. [2] J. Sapir, P. Murer et C. Durand, Les scénarii de dissolution de l'Euro , Fondation ResPublica, Paris, septembre 2013. [3] Citamos assim Durand C., Externalities from FDI in the Mexican Retailing Sector " Cambridge Journal of Economics , 2007, ou C. Durand (avec P. Légé), "Over-Accumulation, Rising Costs and 'Unproductive' Labor: The Relevance of the Classic Stationary State Issue for Developed Countries", Review of Radical Political Economics ou encore C. Durand, " Pourquoi les firmes métallurgiques russes s'internationalisent-elles ? Une perspective institutionnelle et systémique ", Revue d'études comparatives est-ouest , vol. 38, n° 1, mars 2007, p. 151-194. [4] Wedel J.R., (1998), Collision and Collusion - The strange case of Western Aid to eastern Europe, 1989-1998 , New York, St Martin's Press. [5] F.W. Ermarth, " Testimony of Fritz W. Ermarth on Russian organized crime and money laundering before the House committee on Banking and Finance ", 21 septembre 1999, Washington, USGPO . ( www.house.gov/banking/testoc2.htm ) [6] R. Lowenstein, When Genius Failed: The Rise and Fall of Long-Term Capital Management Random House, Septembre 2000. [7] J. R. Barth, The Great Savings and Loan Debacle , Washington (D. C.), American Enterprise Institute Press, 1991 ; L. J. White, The S & L Debacle. Public Policy Lessons for Bank and Thrift Regulation , Oxford/New York, Oxford University Press, 1991. [8] E. Fama, " Efficient Capital Market: a Review of Theory and Empirical Work ", Journal of Finance , vol. 25, n° 2, 1970, p. 383-417 ; E. Fama, K. French, " Permanent and Temporary Component of Stock Prices ", Journal of Political Economy , vol. 96, n° 2, 1988, p. 246-273. Pour une analyse critique du concept, voir C. Walter, " Une histoire du concept d'efficience sur les marchés financiers ", Annales. Histoire, sciences sociales , vol. 51, n° 4, 1996, p. 873-905 [9] D.M. Hausman, The inexact and separate science of economics , Cambridge University Press, Cambridge, 1994, voir le chapitre 13, "On dogmatism in economics: the case of preference reversals". [10] Idem, p. 244. [11] J. Sapir, " L'illusion prudentielle " in C. Walter (dir.), Nouvelles normes financières. S'organiser face à la crise , Paris/Berlin/Heidelberg/New York, Springer/Verlag France, 2010, p. 161-188 [12] H. P. Minsky, Stabilizing an Unstable Economy , New Haven (Conn.), Yale University Press, 1986. Idem, " The Financial-Instability Hypothesis: Capitalist Processes and the Behaviour of the Economy " in C. Kindleberger, H. Laffargue (dir.), Financial Crises: Theory, History and Policy , Cambridge, Cambridge University Press, 1982. [13] Ponto já assinalado por Gunnar Myrdal antes da segunda guerra mundial ; G. Myrdal, The Political element in the Development of Economic Theory , publicado inicialmente em sueco em 1930, Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1954 para a tradução em língua inglesa. [14] Sapir J., " From Financial Crisis to Turning Point. How the US 'Subprime Crisis' turned into a worldwide One and Will Change the World Economy " in Internationale Politik und Gesellschaft , n°1/2009, pp. 27-44 et "Global finance in Crisis: a provisional account of the 'subprime' crisis and how we got into it", Real-world economics review , issue n° 46, 18 May 2008, pp. ,www.paecon.net/PAEReview/issue46/Sapir46.pdf [15] Sapir J. La Démondialisation , Le Seuil, Paris, 2011. [16] Sapir J., L'économie mobilisée. Essai sur les économies de type soviétique , La Découverte, Paris, janvier 1990 ; Idem, Les fluctuations économiques en URSS - 1941-1985 , Editions de l'Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, novembre 1989. Trabalhos de Cédric Durand em resistir.info: Cédric Durand, Le capital fictif – Comment la finance s'approprie notre avenir , Paris, 2014, Les prairies ordinaires O original encontra-se em russeurope.hypotheses.org/3205 Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ . |
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