sábado, 19 de julho de 2014

Do fim do começo ao começo do fim Capitalismo, violência e decadência sistémica



Jorge Beinstein*
19.Jul.14 :: Outros autores
O capitalismo é uma totalidade global e o que aparece como a decadência do centro imperial é a manifestação - decisiva mas parcial - de um fenómeno planetário que inclui a periferia, atolada pela sobredeterminação burguesa universal (decadente) das suas sociedades.


Da Líbia à Venezuela passando pela Síria e México, Ucrânia, Afeganistão ou Iraque… no tempo que passou da década actual assistimos ao permanente desencadear da violência directa ou indirecta (terceirizada) pelos Estados Unidos e os seus parceiros-vassalos da OTAN, toda a periferia foi convertida no seu mega objectivo militar. A onda agressiva não se aquieta, nalguns casos combina-se com pressões e negociações, mas a experiência indica-nos que o Império não agride para ficar melhor posicionado em negociações mas negoceia, pressiona para ficar melhor posicionado para a agressão.
Quando estas intervenções têm sucesso como na Líbia ou Iraque não concluem com a instauração de regimes «pacificados», controlados por estruturas estáveis, como acontecia nas velhas estruturas periféricas do Ocidente, mas desembocam em espaços caóticos atravessados por guerras internas. Trata-se da emergência induzida de sociedades-em-dissolução, da configuração de desastres sociais como forma concreta de submissão, o que coloca a dúvida sobre se nos encontramos perante uma diabólica planificação racional que pretende «governar o caos», submergir as populações numa espécie de indefesa absoluta, convertendo-as em não-sociedades para assim saquear os seus recursos naturais e/ou anular inimigos ou concorrentes… ou melhor, se se trata de um resultado não necessariamente procurado pelos agressores, expressão do seu fracasso como amos coloniais, da sua elevada capacidade destrutiva associada à sua incapacidade para instaurar uma ordem colonial («incapacidade» derivada da sua decadência económica, cultural, institucional, militar). Provavelmente, encontramo-nos perante a combinação de ambas as situações.
Também é possível supor que o Império na sua decadência se encontra prisioneiro de um emaranhado de interesses políticos, financeiros, mafiosos… originando uma dinâmica autodestrutiva imparável que o obriga a desencadear operações irracionais se observamos o fenómeno com uma certa distância histórica, mas perfeitamente racionais se reduzimos a observação ao espaço da razão instrumental directa dos conspiradores, ao seu micromundo psicológico (a razão da loucura como razão de estado ou a astúcia mafiosa impondo-se à racionalidade no seu sentido mais amplo, superior).
Ainda que esses desastres não representem necessariamente acções de verdugos desapiedados destruindo paraísos periféricos, o capitalismo é uma totalidade global e o que aparece como a decadência do centro imperial é a manifestação decisiva mas parcial de um fenómeno planetário que inclui a periferia atolada pela sobredeterminação burguesa universal (decadente) das suas sociedades. A operação de destruição da Líbia lançando sobre o seu território ondas de mercenários e bombardeamentos pôde triunfar aproveitando a degradação do regime kadafista; o golpe neonazi de Fevereiro de 2014 na Ucrânia capturou o governo de uma “república” como resultado do desastre soviético que a tinha submergido numa gigantesca podridão devido à instauração de um capitalismo mafioso; a desestabilização da Venezuela orquestrada pelos Estados Unidos apoia-se em sectores das classes médias conduzidos pela velha burguesia local que não foi eliminada depois de quinze anos de «revolução» («bolivariana”, autoproclamada de “socialista”) eternamente a meio caminho…, elites que não foram varridas de cena, ainda que irritadas, enfurecidas pelo ascenso social das classes baixas.
Tudo isto nos conduz à necessidade de estabelecer o momento da história do capitalismo em que nos encontramos. Trata-se do bordel sangrento global, prelúdio de uma nova acumulação primitiva, berço de uma civilização que entrou no ocaso?
Proponho responder a esta interrogação recorrendo aquela velha e tão repetida frase de Churchill que em plena Segunda Guerra Mundial após o termo da batalha de El Alamein disse que não era o «começo do fim (da guerra), mas o fim do começo» de um processo muito mais importante, decisivo. Encontramo-nos actualmente na presença do fim do começo, vai-se concluindo a etapa preparatória do declínio ocidental que se prolongou durante várias décadas e começa a emergir o começo do fim, o desmoronamento do capitalismo como civilização que, como outras civilizações em declive provavelmente percorrerá uma trajectória temporal complexa, de duração indeterminável de antemão.
Ainda que não possa deixar de assinalar diferenças com as civilizações decisivas, como o seu carácter planetário (não limitada a uma região), a massa de população incluída no processo (actualmente uns sete mil milhões de pessoas e não poucas dezenas ou centenas de milhões), o descomunal desenvolvimento das suas forças produtivas com capacidade industrial e militar para por exemplo destruírem completamente a vida no planeta. O que coloca de maneira radicalmente diferente da opção com que se confrontaram todas as anteriores decadências civilizacionais: superação ou afundamento num longo desastre de que emergia mais à frente uma nova civilização, a partir do espaço anterior ou imposta por uma força externa. Isto não é a decadência da Babilónia devastada pelos pântanos difusores de malária gerados pelo seu próprio desenvolvimento, nem a de Roma imperial esmagada pelo parasitismo e a hipertrofia militar, resultado da sua dinâmica imperialista, em marcha para o abismo enquanto boa parte do resto da humanidade ignorava esses factos [1].
Violência e decadência sistémica
O fenómeno sobredeterminante é a decadência demonstrada por numerosos indicadores como o declínio no longo prazo (desde os anos 1970) da taxa de crescimento económico global, devido ao arrefecimento tendencial do crescimento dos países centrais e o posterior acompanhamento desta tendência por um processo de hipertrofia financeira que se articula com o começo de um parasitismo sem precedentes: consumista, militar, burocrático.
Encontramo-nos perante sociedades imperiais tão decadentes que já não podem mobilizar militarmente a sua juventude como no século XX, ainda que a sua capacidade financeira e os seus avanços tecnológicos lhe permitam contratar mercenários em substituição das forças operativas tradicionais (a oferta de lúmpenes proveniente de todos os continentes é directamente proporcional ao progresso da decadência), utilizar armas como os drones e outros artefactos mortíferos ultra sofisticados que estabelecem uma brecha técnica descomunal entre agressores e agredidos, e esmagam com manipulações mediáticas as suas vítimas directas e o resto do mundo.
Estas «vantagens» são simultaneamente expressões de poder e de debilidade, de capacidade destrutiva mas também de descontrolo ideológico das suas próprias sociedades, de ilegitimidade interna das suas operações, o que somado à sua deterioração económica os impede de passar da destruição à reconstrução colonial dos territórios conquistados.
As transformações burguesas das sociedades europeias deram origem, desde fins do século XVIII à possibilidade de integrar o conjunto das populações nas suas diferentes aventuras militares e, deste modo, o cidadão-soldado e a guerra de massas substituiu o mercenário e os exércitos das aristocracias. Os assassinos a soldo deram lugar aos assassinos voluntários ou forçados que davam a sua vida não por dinheiro mas em defesa da «pátria», da «liberdade», etc..
Mas a decadência do capitalismo a sua transformação depois do aggiornamento burguês da China e do derrube da URSS num sistema único (isto é em dominação planetária visivelmente amoral das elites parasitárias) destruiu os mitos e as legitimações que permitiam aos estados fabricar causas nobres para enviar para a morte o cidadão comum.
A perda de legitimidade do aparelho militar ocidental aparece como um traço decisivo da decadência, mas a reprodução capitalista continua e o exercício da violência contra a periferia retoma a velha tradição dos exércitos mercenários.
Agora a propaganda do poder para as suas populações não tem como objectivo arrastá-las para o campo de batalha (operação inviável), mas sim obter a sua aprovação passiva ou diluir a sua rejeição de aventuras fisicamente distantes apresentadas como fenómeno virtual, como um elemento mais do entretenimento oferecido pela televisão e outros meios de comunicação.
O desenvolvimento bélico foi teorizado pela chamada «Guerra da Quarta Geração», resultado das reflexões ao mais alto nível militar dos Estados Unidos posteriores à derrota no Vietname, visualizada como «guerra assimétrica», onde a força inimiga com baixo nível tecnológico e reduzida potência de fogo mas bem entrosada com a população pode derrotar o exército imperial, possuidor de um elevado nível tecnológico e um gigantesco poder de fogo.
A nova doutrina militar aponta não para uma simples destruição da força militar inimiga mas, principalmente, para o conjunto da sociedade que a sustenta. A desintegração social (económica, moral, cultural, institucional) passa a ser o objectivo procurado e esse processo pode dar-se ou não com intervenções directas, mas preferencialmente com combinações variáveis de intervenções externas (militares, mediáticas, económicas, etc.), e acções de desestabilização interna. Estabelece-se desse modo uma ampla variedade de cenários de agressão. Num extremo podemos situar as guerras do Afeganistão e Iraque, numa zona intermédia a Líbia, Síria ou Jugoslávia e no outro extremo as chamadas intervenções brandas ou revoluções coloridas como no Paraguai, Honduras ou Ucrânia. Todas elas implicam o intenso desencadear de acções violentas no começo da operação ou em algum momento da mesma como resultado da vitória imperialista. Mas estas guerras de configuração variável não resolvem o problema da dominação colonial da periferia, o caos instalado entorpece, encarece e por vezes torna impossíveis os saques sistemáticos.
A opção pela Guerra de Quarta Geração aparece como o que é realmente: o máximo possível de agressão num contexto de debilidade estratégica do agressor, cuja consequência não é apenas a criação do caos periférico mas também a degradação interna. As operações mafiosas no exterior acabam por consolidar práticas mafiosas dentro do aparelho dominante do Império onde se expandem as camarilhas parasitárias, as tendências irracionais, as loucuras elitistas, as rupturas das regras institucionais do jogo.
O começo do fim: o mundo depois de 2008-2013
O sexénio 2008-2013 marca a transição entre o declínio relativamente suave e controlado do sistema, iniciada nos começos dos anos 1970, e a sua degradação geral de que estamos a presenciar os primeiros passos.
A crise desencadeada entre o final dos anos 1960 e começos dos anos 1970 não foi como as anteriores superada através de uma grande onda depressiva destruidora de empregos e empresas que reduzindo salários e concentrando a produção e a procura solvente disparava um novo ciclo ascendente da economia – a era das «crises cíclicas» descritas por Marx tinha terminado. Ainda que Marx tivesse explicado que as forças entrópicas adquiriam uma tal dimensão que já nenhuma reconstrução capitalista seria possível. Ficava assim feito o prognóstico da crise geral do capitalismo, o esquema teórico derivado da lógica da sua dinâmica de acumulação. O que de nenhum modo podia ser prognosticado era o seu desenvolvimento histórico concreto, os seus tempos, os seus protagonistas de carne e osso, os atalhos e as inovações sociais que permitiram postergar ou precipitar o desenlace.
A avaliação prospectiva de Marx era um cenário muito genérico que dava guarida a uma ampla gama de futuros possíveis, não se tratava de uma profecia apocalíptica em que se estabelece uma data ou como calculá-la, descrições precisas de actores, coreografia, etc.. Mas esse esquema teórico permitia a Marx e Engels explicar, por exemplo, que «dado um certo nível de desenvolvimento das forças produtivas e de meios de produção tais que nas condições existentes provocam catástrofes, não são mais forças de produção mas de destruição» [2], o que abria a reflexão sobre o carácter autodestrutivo da civilização burguesa na sua etapa decadente mais avançada.
Entre os vários factores da decadência destacam-se os que resultam decisivos: a degradação (e hipertrofia) financeira e a degradação (e hipertrofia) militar.
Desde aproximadamente 1990 que enquanto o Produto Bruto Mundial (PBM) vinha decrescendo suavemente em progressão aritmética (desde os anos 1970) a massa financeira começou a crescer em progressão geométrica. Os produtos financeiros derivados, a sua espinha dorsal, passaram de representar umas duas vezes o PBM em finais dos anos 1990 a umas 12 vezes em 2008, mas a partir daí a expansão estancou e tendeu a decrescer pouco a pouco.
Durante a ascensão a especulação financeira foi a muleta parasitária que permitiu aos consumidores, empresas e estados do Primeiro Mundo continuar a gastar e a investir, ainda que os rendimentos marginais da avalanche financeira fossem decrescentes ao quadrado, em termos de crescimento do produto bruto dos países centrais; cada vez fazia falta mais droga financeira para obter cada vez menos expansão económica até que, finalmente em 2008, o mecanismo estoirou, o peso financeiro tornou-se insustentável e seguiu-se uma sucessão de auxílios estatais ao sistema financeiro para impedir a sua derrocada.
Mas estes auxílios não reactivavam a economia, apenas travavam a debacle financeira fazendo aumentar as dívidas públicas até ao ponto em que o Estado norte-americano esteve duas vezes é ao ponto em que o Estado norte-americano esteve duas vezes à beira do default, enquanto as dívidas públicas mais as privadas do Japão chegaram em 2013 a 520% do PBI, a 510 na Grã-Bretanha, etc.. A partir daí esgotaram-se os auxílios e o Primeiro Mundo entrou no que no melhor dos casos para ele poderia ser descrito como um longo período de estagnações, recessões e crescimentos anémicos, que não deve ser visto como um patamar de arrefecimento estável da produção, do consumo e do emprego mas como descida em tobogan.
O crescimento zero ou o declínio, ainda que seja suave, significa o aumento tendencial do desemprego e em consequência a entrada num complexo fenómeno de desintegração social.
Por seu lado, a militarização dos Estados Unidos não terminou com o fim da Guerra Fria, e depois de uma breve paragem em fins dos anos 1990 recomeçou a expansão dos gastos militares de tal modo que, em 2012, o seu montante real (somando todos os gastos com fins militares do Estado e não só as do Departamento de Defesa) se chega a uma cifra equivalente a 9% do Produto Bruto Interno [3]. O que poderíamos abarcar como área militar e de segurança do passado «clássico» povoado de militares e agentes profissionais de tipo tradicional adstritos directamente à administração pública deslizou para uma nova etapa com participação ascendente de mercenários, estruturas privadas contratadas pelo estado, e uma multiplicidade de organizações públicas e privadas, oscilando entre a legalidade e a ilegalidade, misturadas com negócios clandestinos (drogas, prostituição, tráfico de armas, etc.). A Guerra de Quarta Geração, a lúmpen-burguesia financeira e o lúmpen-militarismo converteram-se no núcleo duro ideológico-físico de uma elite imperial degradada, que alguns autores qualificam de lúmpen-imperialista [4].
Mas tal como a mega bolha financeira apoiou em primeiro lugar o funcionamento do sistema para depois passar a salva-vidas com rombos, a degeneração militarista-mafiosa e a sua nebulosa doutrina apareceram como tábua de salvação de estruturas militares e de inteligência ineficazes perante uma periferia aparentemente pronta para ser devorada, mas que se lhes escapava das mãos. No entanto, essas esperanças eram ilusórias, e o único que conseguiram foi destruir países, fracassar na tentativa ou ambas as coisas ao mesmo tempo, acumulando gastos e deficits fiscais: a criminalidade converge com a estupidez.
A «transição 2008-2013» significou uma alteração fundamental nas formas da guerra (a sua degradação radical) que deixou a descoberto o carácter da mutação em curso do conjunto do capitalismo. Em meados dos anos 1950 e fazendo referência à então ainda recente prática bélica nazi, Johan Huizinga dizia que historicamente a guerra sempre tinha feito parte das civilizações ou culturas, «visto que uma comunidade (em guerra) reconhecia a outra (contra quem fazia a guerra) como humana…, e separava claramente e de forma expressa a guerra da paz, por um lado e da violência criminal, por outro. A teoria da guerra total – destacava o historiador – renunciou ao último resto lúdico da guerra (isto é a toda a regra do jogo) e com isso à cultura, ao direito e à humanidade e geral [5].
A meu ver, a ruptura hitleriana em relação à prática e à teoria da guerra, isto é a guerra total e os seus genocídios foi uma antecipação, um primeiro ensaio em plena crise capitalista do que actualmente aparece como Guerra da Quarta Geração. No primeiro caso tratou-se de uma monstruosidade temporã, pioneira
«alemã» mas com antecedentes na cultura mais reaccionária dos Estados Unido, sendo que autores como Doménico Losurdo estabeleceram de forma rigorosa evidentes raízes ideológicas estadunidenses do nazismo [6]. Esse desastre expressava a doença de uma civilização que ainda dispunha de reservas sistémicas (morais, produtivas, institucionais, etc.) para se recolocar, e que ainda não tinha tido metáteses generalizadas. O tumor hitleriano foi extirpado a meias e o mal pôde sobreviver, ocultando-se nas sombras à espera de uma nova oportunidade, quando chegaram os julgamentos de Nuremberga e os crimes de guerra (a violação das regras do jogo da guerra moderna) foram selectivamente condenados de forma prolixamente desprolixa.
Quando em finais dos anos 1930 Hermann Rauschning escreveu uma obra essencial para compreender o funcionamento do fenómeno, «A revolução do nihilismo» acertou ao assinalar que «a essência da dominação nazi é o nihilismo», a negação ao mesmo tempo criminosa e suicida da realidade humana, mas enganou-se completamente quando prognosticou que «esse fanatismo produzido e difundido pela maquinaria do poder é tão vazio, tão artificial e inautêntico que todo esse gigantesco aparelho poderá derrubar-se de um dia para o outro devido a um só acontecimento sem deixar rasto de vida autónoma» [7]. Rauschning não soube (ou não quis) enterrar a faca até ao fundo, pois se o fizesse ter-se-ia visto obrigado a sentar no banco dos réus o conservadorismo burguês no seu conjunto e, a partir daí, aos aspectos destrutivos (e autodestrutivos) da civilização ocidental, à qual ele se orgulhava de pertencer.
Agora, quando vemos o cancro fascista propagar-se tranquilamente por toda Europa ao ritmo da crise, desde o avanço irresistível da Frente Nacional em França até à vitória neonazi na Ucrânia, passando pela Holanda, Bélgica, Croácia, Hungria, países bálticos, Grécia, etc., não podemos deixar de constatar o profundo enraizamento do mesmo não só na tragédia dos anos 1920-1930-1940 mas em histórias muito mais antigas, em fanatismos religiosos, em genocídios coloniais e outras práticas sociais de grande crueldade (o nazismo clássico não era superficial nem inautêntico, enterrava as suas raízes na longa trajectória criminal do Ocidente).
Mas o mais significativo e terrível foi a reinstalação sem grandes escândalos da doutrina hitleriana da guerra total, rebaptizada de Guerra de Quarta Geração, por vezes adoçada como «golpes brandos» ou «suaves» ou sob a delirante apresentação de guerras ou bombardeamentos «humanitários». Agora já não se trata de uma experiência pioneira e de certo modo surpreendente, «anormal», mas de um vale-tudo aceite pelo conjunto das elites imperialistas. O facto de a forma capitalista de fazer a guerra ter sofrido tal transformação está estreitamente ligado (faz parte dele) à transformação do capitalismo num sistema destruidor de forças produtivas, estendendo-se ao contexto ambiental com as suas terras, mares, montanhas, animais, etc., apontando para a aniquilação de todo o património histórico da humanidade, de toda a acumulação de civilizações.
Regresso à origem?
Podíamos estabelecer paralelos entre a actual conjuntura e as origens da modernidade.
Robert Kurz pôs a nu as origens militares do capitalismo. Segundo Kurz, no século XVI, «não foi a força produtiva, mas pelo contrário uma contundente força destrutiva quem abriu o caminho à modernização, a saber, a invenção das armas de fogo. A produção e mobilização dos novos sistemas de armas não eram possíveis no plano das estruturas locais e descentralizadas que até então tinham marcado a reprodução social, mas que em diversos planos requeriam uma organização completamente nova da sociedade. As armas de fogo, sobretudo os grandes canhões, já não podiam, ao contrário das armas pré-modernas, ser produzidos em pequenas oficinas. Por isso se desenvolveu uma indústria de armamentos específica, que produzia canhões e mosquetes em grandes fábricas» [8].
Um bom exemplo disso é a presença em pleno século XVI do célebre «Arsenal de Veneza», fábrica militar muito admirada na sua época, provavelmente a primeira indústria moderna que inspirou muitos empreendimentos militares e civis posteriores, com uma organização produtiva baseada numa eficaz divisão de tarefas, esboçava o modelo que séculos depois no início da revolução industrial em inglesa foi descrita por Adam Smith.
Foi efectivamente à volta do desenvolvimento militar que se foram criando redes comerciais e financeiras que permitiram aos príncipes e demais senhores da guerra lançar as suas aventuras.
Estas estavam destinadas às lutas intestinas das aristocracias e à repressão das massas camponesas, mas o seu objectivo principal era a pilhagem da periferia, despoletar decisivo e alimento duradouro, plurissecular da emergência e consolidação do capitalismo, dos seus mercados internos centrais, da sua ciência, da sua arte e da sua expansão industrial e tecnológica (existe por exemplo uma abundante literatura referente á inundação de ouro e prata proveniente das colónias americanas na transformação burguesa da Europa) [9].
Foi a aliança militar-parasitária, enxameada de mercenários, aristocracia militarizada, comerciantes-bandidos, usurários de alto nível, etc., a base de lançamento da conquista periferia, permitindo que uma relativamente pequena economia guerreira realizasse uma pilhagem desmesurada em relação à sua dimensão inicial. No século XVI o Produto Bruto do Ocidente apenas superava os 10% do que poderíamos considerar como Produto Bruto Mundial contra 23%-24% da China ou 27%-28% da índia [10].
A primeira tentativa foram as cruzadas quando sensivelmente nos séculos XII e XIII os ocidentais lançaram uma sucessão de invasões ao rico Médio Oriente, ocupando parte do seu território [11].
Apesar da enorme crueldade desencadeada essa colonização fracassou, os povos invadidos dispunham de uma capacidade militar que lhes permitiu expulsar o invasor através do que poderíamos chamar uma guerra de longa duração, a disparidade entre invasores e invadidos não foi suficientemente grande para carimbar a derrota definitiva das vítimas.
A situação foi-se alterando desde o início do século XV e conheceu uma grande viragem no século XVI em que o Ocidente adquiriu uma superioridade técnico-militar decisiva sobre o resto do mundo.
A batalha de Lepanto (1571) provou a superioridade técnica ocidental sobre o Império Otomano, a eficácia do Arsenal de Veneza esteve por trás dessa vitória [12], meio século antes já os espanhóis tinham aproveitado a sua enorme superioridade técnica para esmagar o Império Azteca, que não conhecia a pólvora nem as armas de metal.
Esta superioridade do Ocidente não foi obra do acaso, apoiou-se no vertiginoso desenvolvimento da sua ciência militar nos séculos XV e XVI, na engenharia militar que esteve no centro do Renascimento europeu, uma herança da engenharia militar medieval que, por sua vez, lançava a suas raízes à ciência militar da antiguidade greco-romana. Bertrand Gille relata que «quando em 1328 Filipe V de Valois concebeu o projecto de partir nas cruzadas, Guy de Vigeano tornou-se seu conselheiro militar e escreveu para o rei um tratado sobre máquinas de guerra… que pode ser considerado como um dos principais antecedentes da ciência militar posterior». Gille destaca que «certas ilustrações do tratado apresentam surpreendentes analogias com algumas imagens de antigos manuscritos gregos e romanos», que juntamento com outros desenvolvimentos demonstram, segundo o autor, uma clara continuidade científico-técnica do tema militar desde a Grécia e Roma até aos séculos XV e XVI [13].
A continuidade histórica da «demanda» (o militarismo) dessa ciência remonta à Idade Média europeia, de que uma das principais características principais foi o sobredimensionamento dos seus dispositivos bélicos, a excessiva proliferação de organizações militares conduzidas por príncipes aspirantes a imperadores e titulares de «impérios», como Carlos Magno, passando por senhores da guerra de todo o tamanho, bandos de mercenários, etc.. Sobre o militarismo feudal enlaçado historicamente com a Antiguidade europeia, guerreira e imperialista, constatemos apenas como observa James O’Donnel que em relação ao império romano já em decadência: «depois de chegar ao trono no ano 284 o imperador Diocleciano e os seus sucessores puderam restaurar as fronteiras romanas e a ordem romana multiplicando por cinco ou dez o número de soldados e funcionários. Diocleciano aumentou o número de soldados até 400 mil e mais tarde chegaram a atingir os 650 mil» [14].
No seu livro «Matança e cultura» [15], Vic Hanson, desenvolve o longo percurso belicista do Ocidente, e ao referir-se às suas vitórias militares no século XVI salienta que «o dinamismo militar europeu era uma continuidade da Antiguidade clássica, não uma consequência casual da idade da pólvora e do descobrimento do Novo Mundo… desde a Grécia até ao presente… as afinidades demonstradas pelas sociedades ocidentais na sua forma de fazer a guerra foram assombrosamente duradouras» e logo acrescenta «as falanges macedónias, tal como o exército de Cortez, a frota cristã que combateu em Lepanto e a companhia de fuzileiros britânicos que defendeu Rorque’s Deift (1879-África, as tropas coloniais derrotadas pelos zulus) dispunham de um armamento muito superior ao dos seus adversários».
Não se tratou só de superioridade técnica mas da extrema crueldade na sua «forma de fazer a guerra», o que leva o autor, apesar da sua admiração pelo Ocidente) a assinalar que: «alguns estudiosos equiparam Alexandre Magno a César… ou Napoleão com os quais partilha uma vontade férrea, o seu génio militar inato e a procura de um império mais poderoso do que o dos recursos naturais da sua terra nativa lhes permitiam. Alexandre, com efeito, guarda afinidades, mas não se parece mais com ninguém do que com Adolfo Hitler». O inevitável paralelo entre as falanges gregas, as legiões romanas, os cruzados, as tropas coloniais espanholas, inglesas, francesas e os exércitos hitlerianos estabelece o fio condutor «ocidental» de uma longa sucessão de guerras, conquistas e matanças.
A acumulação originária do capitalismo baseou-se, teve êxito graças ao saque desmedido de uma periferia e de recursos naturais gigantescos, relativamente «infinitos» dado o nível técnico e a capacidade de rapina dos imperialistas europeus de então. Mas esta falta de comedimento é actualmente impossível, o planeta é demasiado pequeno para as necessidades do que seria um novo processo de acumulação capaz de potenciar o parasitismo ocidental até gerar uma espécie de supercapitalismo global.
As potências centrais são suficientemente grandes para destruir o planeta (o que significaria a sua autodestruição), e é por isso, por causa do seu gigantismo que não podem salvar-se, iniciar um novo ciclo ascendente devorando recursos humanos e naturais, ainda que para sobreviverem como império necessitem de se alimentar das suas vítimas.
Isto marca uma diferença quantitativa essencial como a que ocorreu há cinco séculos, agora a violência imperialista não é um monstro vigoroso, na sua infância ou juventude, mas um monstro velho e obeso.
Ocidente
É necessário associar conceitos artificialmente dissociados como «civilização ocidental», «civilização burguesa», «Império» (ocidental) e «capitalismo». O capitalismo aparece como fenómeno histórico com raízes geográficas ocidentais bem delimitadas carregando uma pesada herança cultural específica. O Ocidente emergiu como uma empresa imperialista colectiva, agrupando vários estados que se expandiram globalmente e, ao mesmo tempo, atolados em ferozes lutas intestinas, e quando a unificação chegou foi só depois de um longo percurso plurissecular, no final da Segunda Guerra Mundial, sob o comando de uma superpotência neo-europeia: os Estados Unidos.
O rebentar da guerra em 1914, mas principalmente a ruptura russa em 1917, marcou o início do declive ocidental, ainda que a decadência tenha parecido reverter-se com o derrube da URSS e, em certo sentido até antes, a partir da reconversão capitalista da China. Mas não foi assim, da desintegração soviética depois de uma década de desastres apareceu a Rússia como potência militar-energética crescentemente autónoma, ainda que mantendo estreitos laços comerciais e financeiros com o Ocidente, e do aburguesamento chinês não ter nascido um país subdesenvolvido dócil aos interesses norte-americanos, como a Índia ou o México, mas uma potência periférica também com importantes margens de autonomia.
A deterioração geral da dominação ocidental, da sua hierarquia imperialista, isto é do capitalismo como sistema mundial, engendrou o fenómeno de despolarização, de descontrolo periférico da China e da Rússia mas também do Irão, e os jogos mais ou menos independentes de alguns estados «progressistas» da América Latina ilustram o processo
Os «bárbaros» do século XXI organizam-se sem tutela romana ou negociando com Roma já não como simples vassalos, mas essa Roma não pode reproduzir-se como tal, o seu parasitismo não pode sobreviver sem os crescentes tributos dos seus súbditos periféricos, necessita cada vez mais sangue das suas vítimas (petróleo barato, lítio, ouro, cobre, salários miseráveis, maiores vantagens comerciais, mega transferências financeiras, etc.), enquanto as vítimas vão encontrando os caminhos para reduzir a pilhagem graças precisamente ao debilitamento do parasita (o que não impede em certos casos que os bárbaros se pilhem entre eles).
Algumas precisões podem-nos ajudar melhor a compreender o que está a acontecer.
Em primeiro lugar, o facto de a consolidação dos estados burgueses centrais ter estado (e continuar estar) estreitamente associada à expansão e consolidação colonial, a extracção massiva de riquezas da periferia que permitiu e continua a permitir a integração das sociedades centrais e a permanência do seu guardião estatal-militar, o fim ou o debilitamento grave da dita exploração marcaria o eclipse desses estados e das suas bases sociais.
Em segundo lugar a comprovação de que o capitalismo é um sistema baseado num encadeamento de hierarquias fortemente autoritárias, ascendendo desde a empresa até chegar ao centro do poder mundial através de uma complexa articulação de estados, grupos económicos, instituições internacionais, meios de comunicação, etc.. A hierarquia imperialista do capitalismo é inerente ao mesmo, é a sua forma histórica concreta de reprodução, nunca foi uma articulação pacífica mas uma incrustação violenta e instável, onde a autoridade é conquistada e conservada com guerras, pressões, armadilhas, etc.. Mas até ao fim da Segunda Guerra Mundial essa hierarquia jamais pôde estruturar-se em torno de um único centro estatal, super-imperialista de poder, já que desde os inícios da modernização e da sua sombra colonial encontramo-nos perante sucessivas rivalidades e guerras inter-imperialistas.
Regida por uma única potência mundial, a fantasia da globalização que ainda insinuava concretizar-se nos já longínquos anos 1990 foi-se desvanecendo na década seguinte, a submissão da Europa e do Japão à chefia estadunidense continua baseada na degradação dos dois parceiros menores e, factos recentes como a Líbia, Síria e Ucrânia são bons exemplos disso. Mas acontece que o chefe imperial também se degrada, o que coloca a incerteza sobre o futuro dessa convergência central. Por seu lado, a periferia vai-se descontrolando precisamente quando era mais necessário o seu controlo (super-exploração) para a reprodução do parasita, o que origina o enfurecimento do império, o desespero, e resgata toda a sua memória racista, não só para expulsar ou reduzir à escravidão os intrusos periféricos que se instalam nos territórios imperiais mas para converter os seus países de origem em zonas de caçada livre.
Esta última etapa ilumina toda a história anterior do sistema, destrói os seus mitos decisivos, deixa a descoberto a sua falsidade essencial. Sobretudo o mito do capitalismo como progresso, como etapa superior na sucessão de civilizações, isto é como a mais poderosa negação da barbárie.
Boa parte das ideologias anticapitalistas dos séculos XIX e XX colocava a superação do capitalismo como uma espécie de continuidade a um nível superior, de negação inicial, revolucionária, apoiada nos êxitos «positivos» do velho mundo – o projecto de ruptura albergava condicionamentos culturais que asseguravam a reprodução de aspectos decisivos da civilização burguesa.
Mas a degradação deste sistema em curso retira o véu ideológico do seu verdadeiro rosto, os êxitos aparentemente positivos da sua tecnologia (onde o capítulo militar é decisivo) aparecem inscritos num contexto de conquistas coloniais com centenas de milhões de assassínios, com liquidações de criações culturais qualificadas, depredando até à extinção uma ampla variedade de recursos naturais.
Podemos incluir numa pequena citação entre parenteses a célebre expressão de Voltaire de que a civilização (burguesa) não suprimiu a barbárie mas aperfeiçoou-a. O capitalismo não deve ser assumido como uma etapa em última instância positiva na marcha do progresso humano, mas como uma desgraça, um desastre, uma degeneração cuja não existência teria evitado numerosas tragédias. O balanço histórico da sua evolução é globalmente negativo, muitos dos seus progressos científicos e tecnológicos teriam sido obtidos seguindo provavelmente outros ritmos e caminhos, mas em contextos sociais menos terríveis.
Hegel nas suas lições de filosofia da história estabelecia que o desenvolvimento da liberdade, componente da marcha da Civilização entendida como encadeamento de civilizações, como a evolução do progresso universal nascia penosamente no Oriente (na periferia) para se realizar integralmente no Ocidente com a vitória mundial da sua civilização, da modernidade burguesa [16]. A soberba egocêntrica impedia Hegel de perceber que a liberdade periférica (embrionária, em desenvolvimento) tinha sido esmagada, abortada, liquidada por um Ocidente parasitário e depredador concretizando a maior matança da história humana, e que a sua civilização sanguinária só podia afirmar-se, uma e outra vez, por meio da força bruta, dos seus dispositivos militares contra os povos oprimidos da periferia (e quando foi necessário também contra as suas próprias populações, como o demonstrou o fascismo europeu do século XX agora em pleno renascimento).
A subestimação, o desprezo ocidental, a sua visão desumanizante das culturas periféricas constituem uma peça chave da sua ideologia imperial estruturada durante muitos séculos de saque, de animalização da imagem do homem do «resto do mundo», fez parte da construção psicológica que facilitou ao colonizador do Ocidente a realização dos grandes genocídios, legitimados como obra civilizadora. A ignorância, o desprezo das riquezas culturais da periferia, da criatividade das suas bases sociais, do potencial de autonomia das suas comunidades camponesas não só embotou os cérebros das elites ocidentais mas também de uma boa parte dos seus inimigos internos, e por isso Gramsci pode chegar a afirmar que na velha periferia pré-capitalista «o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa», enquanto no Ocidente existia uma robusta sociedade civil [17], o que não permite explicar o que é que fizeram as populações andinas da América, por exemplo, para sobreviver culturalmente ao genocídio inicial da conquista, seguido por mais de cinco séculos de opressão e pilhagem ocidental ou de outras proezas culturais dos periféricos da Ásia e África.
É necessário compreender que o declínio em curso do mundo ocidental converte-se em degeneração da sua trama ideológica planetária, isto é do capitalismo como totalidade universal. Desde a década de 1970 que se sucederam as ilusões referidas nas emergências capitalistas não ocidentais, desde o milagre japonês, passando pelos tigres e dragões da Ásia (Coreia do Sul, Taiwan, etc.) até chegar á China. Em todos estes era evidente que as expansões industriais-exportadoras que lideravam os desenvolvimentos «milagrosos» apoiavam-se nas necessidades dos mercados ocidentais ou de mercados periféricos fortemente dependentes dessas procuras, pelo que a deterioração dos ditos mercados é um golpe para os capitalismos não-ocidentais. Além dos factos como a hipertrofia globalizada das redes financeiras estabeleciam um só espaço mundial fortemente intercomunicado, a impossível desfinanceirização do capitalismo constitui um bloqueio comum de que não podem fugir nem o centro nem a periferia. Esta última, além disso, quando embarca na prosperidade burguesa fica submetida ao modelo consumista, aos modelos ideológicos ocidentais que têm um devastador efeito desestruturante (familiar, comunitário, ambiental).
Em meados de 2008 em plena explosão do sector financeiro Richard Haass, presidente do Council on Foreign Relations dos Estados Unidos, publicou um artigo onde lançava o grito de alarme: a unipolaridade estava condenada à morte e não tendia a ser substituída pela multipolaridade, estava a começar a emergir um mundo não polarizado que o autor carregava de imagens caóticas [18]. Haass compreendera que o fim da hierarquia imperialista, unipolar desde 1991 e multipolar em toda a história anterior do sistema (incluído o período de auge do império britânico) podia chegar a ser uma espécie de «fim do mundo», de queda da «civilização», quer isto dizer de desarticulação do capitalismo como cultura universal e, naturalmente, adiantava algumas medidas correctivas que permitiriam mitigar o suposto desastre.
Haass tinha razão quando alertava que a não-polaridade albergava o fantasma do fim da «civilização» (burguesa), e George W. Bush e depois Barack Obama tentaram impedir esse futuro introduzindo correctivos militares que acabaram por agravar a doença do Império propagando o caos onde tal lhes foi possível.
Por seu lado, potências periféricas como a Rússia e a China não estão em condições de reordenar, no sentido burguês do termo, a desordem causada pela decadência ocidental desenvolvendo novos espaços capitalistas hierarquizados em substituição dos velhos espaços agonizantes, não são forças aglutinadoras do sistema mas zonas capitalistas resistentes, submersas também elas na decadência global. Tentam travar as punhaladas do Império contra os seus interesses mas ao resistir, ao responder em contragolpe ou avançar sobre os flancos débeis do adversário contribuem para a «desordem» geral, bloqueiam as tentativas de recomposição do domínio ocidental do mundo e desse modo agravam a degeneração global do capitalismo.
A Insurreição global como necessidade Global
As elites dominantes da China e Rússia, e também as do Brasil, Índia ou Irão acreditam na possibilidade de desenvolver os seus capitalismos nacionais, fazem tudo o que podem para não se afundarem no desastre a que os quer condenar o Ocidente, mas o sistema global profundamente interrelacionado do sistema de que fazem parte condiciona as suas astúcias. Todas essas rasteiras e encontrões entre o centro e a periferia contribuem para criar um panorama global rarefeito que, em qualquer momento, pode derivar em guerras, situações pré-bélicas a nível regional, ameaçando algumas vezes transformarem-se em confrontações mundiais, como ocorreu em 2013 por causa da situação síria e em 2014 com a Ucrânia.
Karl Polanyi descrevia a longa «pax europea» vigente (salpicada de conflitos menores) desde o fim das guerras napoleónicas até 1914 como o resultado, segundo ele, do papel harmonizador, apaziguador de conflitos desempenhado por alguns factores ocultos, entre os quais destacava a «alta finança», aqueles círculos financeiros europeus que colocando-se acima dos interesses políticos nacionais assumiam compromissos, negócios que atravessavam países, acalmando assim as disputas inter-imperialistas [19].
Mas Polanyi via apenas a superfície do fenómeno, a realidade dos negócios da «alta finança» findava-se na vertiginosa acumulação de capitais proveniente principalmente da rapina imperialista do mundo, de que um dos pilares essenciais era a acção dos estados ocidentais, o desenvolvimento dos seus aparelhos militares (decisiva fonte de negócios), e das consequentes megalomanias «patrióticas» das respectivas burguesias nacionais rivais. Polanyi refere que «os Rothschild não estavam sujeitos a um governo; como uma família incorporavam o princípio abstracto do internacionalismo; a sua lealdade era para com uma firma, cujo crédito se tinha convertido na única conexão supranacional entre o governo político e o esforço industrial numa economia mundial que crescia com rapidez» [20]. Na realidade o papel «pacificador» dos Rothschild fazia parte de um perigoso jogo duplo mas muito rentável: por um lado excitavam as bestas alentando as suas ambições (e de imediato lhes passavam a conta), por outro acalmavam-nas quando ameaçavam fazer um desastre, mas essa sucessão de excitantes e calmantes aplicadas às bestas que absorviam drogas cada vez mais fortes terminou como tinha de acabar: com uma gigantesca explosão (Agosto de 1914).
Trasladando-nos ao mundo actual é necessário afirmar que a globalização dos negócios não cria um manto transnacional pacificador, bem pelo contrário, sobretudo nos centros globais do poder político-militar incentivando megalomanias criminosas.
É no interior do sistema global decadente que se desenvolvem as ilusões, esperanças e rebeldias da periferia, como a de afiançar capitalismos autónomos debaixo de bandeiras da restauração da «identidade russa» ou do «socialismo de mercado» chinês ou de um socialismo a meias como na Venezuela ou de uma sociedade baseada no Islão como no Irão ou de capitalismos «progressistas» como no Brasil, Argentina ou Equador. Mas também a resistência ao invasor no Afeganistão ou na Líbia até chegar à guerra prolongada pelo socialismo das FARC na Colômbia, aos protestos sociais na Europa, etc.. Esse grande quebra-cabeças não constitui uma insurreição global nem muito menos um movimento em vias de articulação, mas um processo extremamente heterogéneo onde se apresentam erupções efémeras, ciclos de longa duração, tentativas de desenvolvimento capitalista relativamente autónomos, rebeliões anticapitalistas, etc., que podem ser vistos de diferentes maneiras, uma delas é a de uma grande turbulência periférica que se vai expandindo no meio de contradições de todo o tipo, anunciando ao mesmo tempo cenários futuros de insurgência popular contra o sistema e o seu contrário: o afundamento em degradações prolongadas.
Esse espaço complexo que as potências ocidentais tratam de esmagar, isolar, demonizar, triturar, aí, reproduz-se um gigantesco proletariado universal, vários milhares de milhões de camponeses, operários, marginais, comerciantes miseráveis, etc., condenados à morte ou à sobrevivência infra-humana pela dinâmica decadente do sistema.
Constituem uma realidade plural que se opõe naturalmente à homogeneização escravizante do Ocidente tentando preservar e/ou construir identidades, espaços de liberdade, sobreviver, viver dignamente.
Os próximos anos dirão se a partir dessa massa proletária irrompe a insurreição global que partindo da sua pluralidade vá convergindo na segunda ofensiva contra o império, a primeiro ocorreu no século XX a partir da Revolução Russa e converteu-se numa rebelião global que se prolongou durante cerca de seis décadas, abarcando desde a China a Cuba, passando por Argélia, Vietname, Nicarágua.
Há meio século estavam na moda na Europa ocidental autores que denunciavam a perda da hegemonia da região superada por superpotências extra-regionais como a URSS, os Estados Unidos ou o Japão. Um desses textos, de grande êxito editorial, foi «O rapto da Europa» [21] de Luis Diez del Corral, com a tese que nações extra europeias estavam a roubar ou que já tinham roubado à Europa a sua maior criação cultural: a modernidade.
Deslumbrado pelo mito grego o autor não relembrou suficientemente o seu significado histórico: Zeus rouba, rapta a Europa, princesa do Médio Oriente enganada pelo deus que mimetizado como touro a induz a que o monte, coisa que o ladrão aproveita para a sequestrar e levá-la para a sua ilha. A origem do Ocidente histórico é o engano e o roubo o seu próprio nome: Europa é o de um troféu produto do roubo. Em última instância, se o mundo não ocidental se apropriasse da modernidade ocidental não estaria a fazer mais do que a recuperar o capital mais os juros das riquezas que o ladrão lhe tinha tirado durante séculos: ouro, prata, petróleo, cereais, centenas de milhões de vidas humanas. Na realidade, o planeta está hoje completamente modernizado, para uns (o centro do mundo) isso significa desenvolvimento capitalista, poder, privilégios, enquanto para o resto quer dizer subdesenvolvimento capitalista, miséria, frustrações.
De qualquer modo a «apropriação periférica da modernidade» é um presente envenenado, é a ilusão de reproduzir os supostos êxitos culturais da civilização burguesa de maneira independente ou enfrentando o Ocidente; quando o escravo imita o amo o que pretende regenerar a sua comunidade adoptando-adaptando os seus fundamentos ideológicos, mas o que consegue é bloquear a criatividade revolucionária da sua base social (assim o demonstra a experiência histórica do século XX [22], acredita ter encontrado o fio que lhe permite sair do labirinto, agarra-se a ele e caminha triunfal para a saída… na verdade agarrou-se ao rabo do diabo que astuciosamente o desvia para passagens ainda mais sinistras.
Mas a modernidade entrou na decrepitude e a libertação das suas vítimas centrais e periféricas só pode ser alcançada pela negação absoluta do capitalismo, a sua completa destruição, para a partir das cinzas construir um mundo novo.
Nada autoriza que essa proeza (a maior da história humana) seja inevitável, a regeneração pós-capitalista é historicamente necessária, ainda que não constitua um fenómeno inexorável imposto por supostas leis da história. Trata-se de uma tarefa que requer um gigantesco esforço voluntarista animado por ideias, resultado de práticas insurgentes, rebeldias mais ou menos radicalizadas, de provas, erros, fracassos, êxitos efémeros ou duradouros.
Notas:
[1] As decadências de civilizações anteriores e as reflexões contemporâneas sobre as mesmas na medida em que alcançavam uma visão de certa amplitude associavam as ditas decadências com futuras.
[2] Marx y Engels, “La ideología alemana”, Ediciones Progreso, Moscú, 1974.
[3] Em 2012 os gastos do Departamento de Defensa chegaram a uns 700 mil milhões de dólares, se aos mesmos adicionarmos os gastos militares que aparecem integrados (diluídos ou ocultos) noutras áreas do Orçamento (Departamento de Estado, USAID, Departamento de Energia, CIA e outras agências de segurança, pagamentos de juros, etc.) chegar-se-ia a uma cifra próxima Dos 1,3 milhões de milhões de dólares. Essa cifra equivale a 50% das receitas fiscais previstas ou a 100% do deficit fiscal. Esses gastos representaram quase 60% dos gastos militares globais e se os somarmos aos dos seus parceiros da OTAN e de alguns países vassalos extra-OTAN como a Arábia Saudita, Israel, Colômbia ou Austrália estaríamos entre os 75 e os 80% da despesa global (Ref: Jorge Beinstein, “Capitalismo del Siglo XXI. Militarización y decadencia”, Ed. Cartago, Buenos Aires 2013).
[4] Narciso Isa Conde, “Estados neoliberales y delincuentes”, Aporrea, 20/01/2008, www.aporrea.org/a49620.html
[5] Johan Huizinga, “Homo ludens” (1954), Emecé Editores, Buenos Aires, 1968.
[6] Domenico Losurdo, “Las raices norteamericanas del nazismo”, Enfoques Alternativos, nº 27, Octubre de 2006, Buenos Aires.
[7] Hermann Rauschning, “La révolution du nihilisme”, Gallimard, Paris, 1980.
[8] Robert Kurz, “Los orígenes destructivos del capitalismo”, 1997, ttp://www.oocities.org/pimientanegra2000/kurz_origen_destructivo_capitalismo.htm
[9] Noutros textos apresentei um conceito de Anouar Abdel Malek a meu ver essencial para entender o fenómeno, trata-se do “surplus histórico” acumulado durante séculos pelo Ocidente resultado de um saque universal sem precedentes, património imperialista baseado na destruição do meio ambiente e de civilizações de todos os continentes (Anouar Abdel Malek, “Political Islam”, Socialism in the World, Number 2, Beograd 1978.
[10] Angus Maddison,”The World Economy: Historical Statistics”, OECD 2003.
[11] René Grousset qualificou-a como “a primeira expansão colonial do Ocidente”. Renée Grousset, “Las cruzadas”, EUDEBA, Buenos Aires, 1965.
[12] “El poder veneciano se basaba en su capacidad para fabricar armas de acuerdo a los modernos principios de la especialización y la producción capitalista” sublinha Victor Davis Hanson para acrescentar que “tres años después de Lepanto el monarca francés Enrique III, que se encontraba en Venecia, visitó el Arsenal que, para su asombro, montó, botó y equipó una galera en una hora! En condiciones normales, el Arsenal, recurriendo a principios de construcción naval, financiación y producción en masa comparables únicamente a los del siglo XX, era capaz de botar una flota entera de galeras en el espacio de unos pocos días”, Victor Davis Hanson, “Matanza y cultura. Batallas decisivas en el auge de la civlización occidental”, Fondo de Cultura Económica-Turner, México D.F. / Madrid 2006.
[13] Bertrand Gille, “Les ingénieurs de la Renaissance”, Herman, Paris 1964.
[14] James O’Donnell, “La ruina del imperio romano”, Ediciones B, Barcelona 2010.
[15] Victor Davis Hanson, op cit.
[16] G.W.F Hegel, “La Raison dans l`Histoire”, Union Générale d`Editions, 10/18, Paris 1965.
[17] Antonio Gramsci, “Cuadernos de la cárcel”, Ed. Era, México, 1999.
[18] Richard N. Haass, “The Age of Nonpolarity. What Will Folow U.S. Dominance”, Foreign Affairs, Mai/June 2008.
[19] Karl Polanyi, “The Great Transformation. The Political and Economic Origins of Our Time”, Bacon Press, Boston, Massachusetts, 2001.
[20]K. Polanyi, op. cit.
[21] Luis Diez del Corral, “El rapto de Europa”, Alianza Editorial, Madrid 1974.
[22] Desde as peias burocráticas da história soviética até chegar ao realismo burguês dos dirigentes chineses passando pelos diversos nacionalismos mais ou menos “socialistas” ou capitalistas do Terceiro Mundo.
* Economista, Prof. da Universidade de Buenos Aires.
Tradução de José Paulo Gascão
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