sexta-feira, 3 de janeiro de 2014
Carvoarias representam um quinto das inclusões na ‘lista suja’ do trabalho escravo
diarioliberdade.org
Fiscalizações registraram casos graves. Resgatados relatam ameaças físicas com armas de fogo e agressões por parte dos empregadores
Alojamento precário, péssimas condições de higiene, indisponibilidade
de água potável, jornada exaustiva, falta de registro em carteira de
trabalho. As violações típicas à dignidade do ser humano que configuram o
uso de mão de obra em condições análogas à escravidão repetem-se
invariavelmente nos casos de resgate de trabalhadores na produção de
carvão vegetal incluídos na atualização do Cadastro de Empregadores do
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), a chamada "lista suja".
Divulgada na última segunda-feira, 30 de dezembro, a relação traz, entre
os novos nomes, 21 empregadores cuja atividade é a fabricação da
substância negra através da queima de madeira – praticamente um quinto
das inclusões. No total, 162 pessoas foram resgatadas do trabalho
escravo nesse setor. Já a siderurgia de ferro-gusa, que no Brasil
utiliza como combustível e matéria-prima o carvão vegetal, responde por
duas inclusões, num total de 55 libertados.
O Brasil é o maior produtor mundial da substância, segundo estatísticas
da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura
(FAO). De acordo com o "Balanço Energético Nacional 2013", do Ministério
de Minas e Energia e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), em 2012 a
produção total foi de 7,4 milhões de toneladas. Desses, 5,2 milhões de
toneladas, ou 70,3% do total, foram utilizados na produção nacional de
ferro-gusa e aço. Diferentemente de outros países produtores de
ferro-gusa e derivados, o Brasil se caracteriza pelo uso significativo
do carvão vegetal como combustível e agente redutor nos altos-fornos de
redução de minérios de ferro, em substituição ao coque metalúrgico –
cuja matéria-prima é o carvão mineral.
O carvão de origem vegetal é considerado uma alternativa mais
sustentável em relação ao coque – enquanto este libera enxofre quando
queimado, a produção daquele pode incluir o plantio de árvores para
compensar os gases de efeito estufa liberados na sua queima. No entanto,
segundo o relatório "Combate à devastação ambiental e trabalho escravo
na produção do ferro e do aço", elaborado em 2012 pela Repórter Brasil,
esse potencial "é colocado em xeque pela realidade do desmatamento e
exploração degradante do trabalho que marca parte considerável da
produção de carvão vegetal no Brasil (...) basta citar que atualmente
cerca de 60% do carvão vegetal feito aqui é proveniente de florestas
nativas. Além disso, há destruição ambiental e ocorrência de trabalho
análogo à escravidão mesmo nos casos das chamadas 'florestas plantadas',
que os movimentos sociais preferem denominar de 'desertos verdes'".
Entre as carvoarias incluídas na atualização da "lista suja" do
Ministério do Trabalho, 20 utilizam florestas nativas, enquanto duas
fazem uso de florestas plantadas.
A cadeia de ferro-gusa, portanto, ao utilizar na sua produção carvão
vegetal muitas vezes proveniente de desmatamento ilegal e fabricado com
mão de obra escrava, contribui para esse quadro de impactos
socioambientais. No estudo de 2012 da Repórter Brasil, além disso,
inclusive grandes montadoras de automóveis, como Fiat, Ford, General
Motors, Volkswagen e Peugeot, entre outras, foram identificadas na
cadeia produtiva da substância obtida pela queima de madeira.
Sem proteção
Na mais recente atualização da "lista suja", outro padrão de violação
nos casos de trabalho escravo na produção de carvão vegetal é o não
fornecimento de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) aos
trabalhadores. Todo ciclo de fabricação do carvão vegetal implica alto
risco aos empregados envolvidos: corte de madeira, transporte da lenha
até a porta do forno, abastecimento do forno, acendimento do fogo,
vigilância do cozimento, retirada do carvão etc. Dessa forma, o
trabalhador é submetido, ao longo de todo esse processo, a gases
tóxicos, fuligem, cinzas, pó e altas temperaturas, o que pode lhe causar
problemas como desidratação, queimaduras, lesões musculares graves,
hérnias inguinais e escrotais e, inclusive, fraturas ou cortes, em caso
de acidente.
Foi o que aconteceu com um dos funcionários de Vicente Araújo Soares,
empregador incluído na "lista suja" por um flagrante de submissão de 15
pessoas a condições análogas à escravidão em duas fazendas em Monte
Alegre do Piauí (PI). Sem os devidos EPIs, o trabalhador cortou a perna
após perder o controle da motosserra enquanto cortava madeira para ser
levada aos fornos. O acidente foi, inclusive, presenciado por fiscais do
Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), vinculado ao MTE. Conforme
reportagem publicada na época, abril de 2012, "além da ausência de
equipamentos básicos de proteção, os fiscais identificaram diversas
outras irregularidades trabalhistas e condições degradantes no
desmatamento para abertura de pasto para gado. A extração de madeira
servia para produção de carvão".
Maior libertação
Entre as carvoarias, o maior resgate ocorreu na de Dois Irmãos, em
fevereiro de 2011, em Natividade (TO). Seu representante legal, Antônio
Carlos Lima, foi quem teve o nome incluído na "lista suja" do trabalho
escravo. Vinte trabalhadores foram submetidos a condições degradantes na
frente de trabalho e no alojamento. Além disso, tiveram a liberdade
restringida por meio de constantes ameaças do empregador, que chegou a
confessar ter agredido um trabalhador com socos e chutes. Os resgatados
declararam que o patrão andava armado para intimidá-los.
A carvoaria de Lima fica dentro da Fazenda Pedra Branca, cujo
proprietário é Ivandro Luís Ramos, morador de Luís Eduardo Magalhães
(BA). De acordo com a apuração da fiscalização, Ivandro tem um contrato
de arrendamento rural e cedeu a área para que Antônio fizesse a limpeza
da terra e utilizasse a vegetação como matéria-prima na fabricação de
carvão vegetal. Esse tipo de "acordo" é comum, pois simplifica a
"limpeza" do terreno para que o proprietário possa formar pastagem com
vistas à criação de gado bovino.
Nesse caso específico, foram muitas as violações flagradas. A
alimentação, por exemplo, era preparada sem condições básicas de higiene
e com sal destinado aos bois, não de cozinha. As refeições eram
realizadas no meio do mato, próximo aos fornos de carvão ou em toras de
madeiras, usadas como bancos. Os empregados não tinham proteção contra
sol ou chuva, animais domésticos ou silvestres. A água consumida não era
potável. Nas frentes de trabalho, não havia instalações sanitárias e os
funcionários trabalhavam sem EPIs, expostos a altas temperaturas,
fumaça, poeira e ao impacto das cargas de carvão, carregadas diretamente
no ombro. Além disso, foram constatadas diversas irregularidades nos
dormitórios. A Fazenda Pedra Branca, onde a carvoaria funcionava,
recebeu financiamento do Banco da Amazônia.
Outros crimes
A relação de carvoeiros entre os escravagistas incluídos na atualização
da "lista suja" do Ministério do Trabalho contém, ainda, nomes
envolvidos em outros crimes, além do de submissão de trabalhadores a
condições análogas à escravidão. José Carlos Izidoro de Souza, que teve
nove de seus funcionários libertados em 2012 em Cassilândia (MS), foi
condenado em primeira instância pela Justiça de São Paulo por receptação
de carga roubada: três tratores e uma máquina escavo-carregadeira.
Osmar Ramos Gomes, que entra na atualização por ter sido flagrado
explorando duas pessoas em Rio Verde (GO), teria tentado matar um dos
homens resgatados. Meses após a libertação, o empregado em questão
voltou a ser aliciado e, ao ficarem sozinhos durante uma entrega de
carvão, o antigo patrão sacou uma arma e chegou a atingi-lo na perna,
conforme registrado em inquérito aberto pela polícia local.
Já a empresa da qual Valdecir Brás Luchi é sócio-proprietário, a
Carvoaria Transcametá – EPP), é apontada em documento do Ministério
Público Federal do Pará (MPF/PA) como ré em ação de R$ 3,8 milhões por
uso de 3 mil metros cúbicos de madeira ilegal. Luchi foi incluído na
"lista suja" do trabalho escravo por causa da libertação de 17
funcionários em duas carvoarias de Breu Branco (PA). Por sua vez, Angelo
Augusto da Silva e Jorcelino Tiago Queiroz têm suas terras embargadas
pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (Ibama) por crime ambiental. Queiroz, flagrado explorando
dois trabalhadores em condições análogas à escravidão em Ribeirão
Cascalheira (MT), foi eleito suplente de vereador pelo Partido
Republicano (PR) em 2012.
Siderurgia
As duas siderúrgicas de ferro-gusa incluídas na "lista suja" do trabalho
escravo são a Fergubel – Ferro Gusa Bela Vista Ltda, por uma libertação
de 35 trabalhadores em Porto Alegre do Piauí (PI), em 2008, e a Usina
Siderúrgica de Marabá S.A. (Usimar), por ter submetido 20 pessoas a
condições análogas à escravidão em Abel Figueiredo (PA), em 2006.
Em 2008, a Usimar foi excluída do Instituto Carvão Cidadão (ICC), criado
pelas siderúrgicas do Pólo Carajás, no Pará, com o objetivo de melhorar
as condições de trabalho nas carvoarias fornecedoras de carvão vegetal.
Como consequência, a empresa foi também excluída do Pacto Nacional Pela
Erradicação do Trabalho Escravo, articulação de mais de 180 empresas e
associações engajadas no combate à exploração do trabalho escravo
contemporâneo. Sua saída foi decorrência da série de sanções e autuações
recebidas. Em abril de 2007, a Usimar foi multada pelo Ibama por
consumo de carvão ilegal. No ano seguinte, foi autuada pela Secretaria
de Meio Ambiente do Estado do Pará (Sema) por não ter cumprido
condicionantes para a proteção do meio ambiente.
Apesar disso, a Usimar teve um de seus projetos – implantação de uma
unidade de cogeração de energia elétrica – financiados pelo Banco da
Amazônia. A instituição financeira, cuja "missão" é apoiar
empreendimentos conscientes ambientalmente, foi responsável por cerca de
40% do valor total.
A reportagem tentou entrar em contato com Antônio Carlos Lima, Vicente
Araújo Soares, José Carlos Izidoro de Souza, Osmar Ramos Gomes, Valdecir
Brás Luchi, Angelo Augusto da Silva, Jorcelino Tiago Queiroz, Fergubel e
Usimar, mas não obteve sucesso até a publicação desta matéria.
*Colaboraram Daniel Santini, Hélen Freitas e Stefano Wrobleski
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