quinta-feira, 26 de dezembro de 2013
Apoio logístico de comunidades pobres foi fundamental para sucesso de médicos cubanos na Venezuela
operamundi.uol.com.br
“Não queremos cubanos aqui.” Assim justificavam alguns moradores de
setores de baixa renda ao não abrirem a porta de suas casas a médicos
cubanos recém-chegados à Venezuela, em 2003. Segundo Luis Vásquez, um
mensageiro de 65 anos que vive no bairro 23 de Enero, não demorou, no
entanto, para que a percepção dos resistentes à presença dos
profissionais estrangeiros mudasse. “Hoje essas pessoas se atendem aqui e
gostam deles”, conta.
Vásquez foi um dos venezuelanos de setores pobres que abrigaram em suas
casas médicos cubanos naquele ano. Com uma reorganização dos filhos nos quartos da casa
e a sala adaptada, com uma maca emprestada para que servisse como
consultório, a médica cubana passou a morar com a família e a receber
moradores que buscavam atendimento. “Foi um processo muito bonito. Era a
primeira vez que tínhamos um médico aqui dentro do bairro, atendendo
nas casas”, relata.
Às vezes, alguém ligava passando mal no meio da madrugada e ele acompanhava a médica até a casa do paciente para mais uma consulta. “E ela ia mesmo quando chovia”, conta Vásquez, lembrando que a doutora dizia que o bairro tinha muita necessidade de médicos. A esposa do mensageiro, Jean Theodora, conta que cozinhava, lavava e passava as roupas para a médica. “Ela atendia as pessoas aqui em casa até de noite, trabalhava muito, inclusive aos domingos”, explica.
A chegada de médicos cubanos à Venezuela remete a 1999, quando fortes
chuvas provocaram inundações, deslizamentos de terra e deixaram milhares
de pessoas afetadas no estado de Vargas. Posteriormente, brigadas
atuaram em zonas rurais do país. Em 2000, um convênio de cooperação
integral entre Cuba e Venezuela foi assinado.
Em 2003, a prefeitura de Libertador, principal município da capital
venezuelana, e a embaixada de Cuba assinaram um convênio para que
médicos desta nacionalidade prestassem atenção primária em comunidades
de forma provisória. Um concurso foi aberto para que médicos
venezuelanos preenchessem as 948 vagas do programa, mas somente 52
candidatos se inscreveram, segundo uma sentença do TSJ (Tribunal Supremo de Justiça) de setembro daquele ano.
Ao longo dos meses, o programa municipal ganharia caráter nacional, com o nome de Missão Barrio Adentro. Ao longo dos anos, foram criados CDIs (Centros de Diagnóstico Integral), SRIs (Salas de Reabilitação Integral), CATs (Centros de Alta Tecnologia)
e centros oftalmológicos para o atendimento de casos mais complexos.
Atualmente, 11,6 mil médicos da ilha caribenha atuam na Venezuela, de
acordo com dados da embaixada cubana.
Apoio
Além da doutora recebida por Vásquez, outros médicos da brigada de 53
profissionais que chegou à Venezuela em 2003 foram acolhidos em casas
familiares de comunidades pobres. “As pessoas ofereceram suas casas
voluntariamente. Para os moradores da região, era como ter uma clínica dentro da comunidade. Eles se dedicaram muito a nós”, lembra Mariela Márquez Montoya, especialista em medicina geral
integral, que foi recebida em uma moradia na região de El Cementerio.
“Até hoje essas pessoas são como se fossem minha própria família”, diz.
De acordo com o trabalho “As Missões Sociais na Venezuela: uma
aproximação a sua compreensão e análise”, realizado pelo Ildis
(Instituto Latino-americano de Investigações Sociais), em 2006, com
coordenação da socióloga Joli D’Elia, o início do programa Barrio
Adentro requereu intensa atividade para alojamento dos médicos cubanos nas próprias comunidades.
As casas para abrigo dos médicos deveriam ter um “chefe do lar”
empregado, uma cama, um guarda-roupa, um ventilador e acesso a banheiro,
sem que as famílias recebessem apoio econômico. “Isso foi sinalizado
com muita clareza para as comunidades, as quais aceitaram, de todos os
modos, se encarregarem da hospedagem, da manutenção e da segurança
pessoal dos médicos”, expressa o trabalho.
Em alguns casos, com médicos viveram em casas de moradores da comunidade
por até três anos. “Não tinha nenhuma autoridade que se
responsabilizasse por essa administração. Na prática, os comitês faziam
tudo o que tinham que fazer, de segurança a acompanhar os médicos nas
visitas de terreno, fazer os censos, programar as visitas com ele. Isso
se manteve graças a estas pessoas das comunidades. Em caso de algum
problema, eles faziam a ponte do médico com o ministério e exigiam os
insumos para autoridades”, relata D´Elia.
Casa a casa
Segundo Vásquez, de fato, a comunidade se solidarizou para ajudar na
adaptação dos médicos. “Davam comida, acompanhavam ela a todos os
lugares”, relata sobre o caso de sua hóspede, contando que no
consultório improvisado em sua casa, a profissional se dedicava ao
tratamento de “casos simples”. Após cerca de 40 dias, a comunidade
conseguiu um espaço para a realização das consultas.
Pequenos postos médicos de tijolos em formato octogonal foram sendo
inaugurados gradualmente, a partir de dezembro de 2003. Com dois
andares, os chamados “módulos” funcionam como consultório no térreo e
moradia do médico no andar superior. Estes locais oferecem atenção
primária. “É uma prevenção. Quando o caso é grave, os pacientes devem
ser remetidos a CDIs ou a hospitais públicos”, explica Leila Lisemberg,
de 59 anos, integrante de um Comitê de Saúde.
A doutora cubana Anailys Alfalla Montenegro, que mora em uma dessas
pequenas construções, hoje espalhadas pelo 23 de Enero, conta que é
responsável pelo atendimento de 273 famílias e uma população de 985
habitantes. Apresentando uma série de estatísticas da região, que afirma
ser atualizada por cada doutor que chega à comunidade, explica que o
predomínio populacional é masculino e que a pirâmide etária é jovem.
Entre os dados analisados pelos cubanos que atuam em módulos estão o
nível de escolaridade da população local, condições de provisão de água
potável, de coleta de resíduos líquidos e sólidos, níveis de prevenção
sexual e estado de moradias.
“Aqui o primordial é que, para conhecer a comunidade, fazemos uma
análise da situação de saúde do local. É um processo multidisciplinar e
nos apoiamos nos Conselhos Comunais [organizações populares para
decisões na comunidade] e nos Comitês de Saúde [organizações criadas
para oferecer apoio comunitário aos médicos], com o objetivo de
antecipar os principais problemas e, assim, poder ajudar a população”,
explica.
De acordo com ela, em seu setor os principais problemas se devem a
doenças crônicas não transmissíveis. “Hipertensão, diabete, doenças
cerebrovasculares, bronquiais e hepatopatias crônicas são alguns dos
casos que controlamos. Vamos às casas, medimos a pressão, damos
medicamentos, vitaminas. Trabalhamos com o individuo, com a família e
com a sociedade no que possamos ajudá-los. E muitas vezes em lugares
onde nunca tinha chegado um médico”, relata.
Resistência
A doutora Montoya diz nunca ter sofrido hostilidades pelo fato de ser
cubana. “A aceitação sempre foi muito boa”, explica. Os relatos de
Vásquez e de integrantes de Comitês de Saúde consultados por Opera Mundi
revelam, porém, que os profissionais estrangeiros
sofreram resistência em algumas localidades. “Alguns ainda não se
atendem com cubanos, mas agora respeitam, já não se metem com eles”,
relata Aide Garrido, uma arrumadeira de 57 anos, que mora na região
caraquenha de Chacaíto.
Segundo ela, alguns moradores de sua comunidade chegaram a se opor à
construção de um módulo onde poderiam ser atendidos: “Diziam que o
espaço seria para um parque, mas estava abandonado. Defendemos o projeto
e eu disse para a doutora não se preocupar. Ela chegou a chorar, porque
tinha gente que dizia ‘fora cubanos’, cuspia quando passávamos. Quando
começou a ter consultas no módulo, lembro de ter visto algumas dessas
pessoas na fila”.
“No começo as pessoas não aceitavam a ajuda, batiam a porta
na nossa cara. Achavam que o médico cubano não era médico. Mas quando
viram que o resultado era positivo, grande parte passou a se atender e
agora gosta deles. Aqui não aconteceram agressões, porque sempre
estávamos cuidando dos médicos, em todos os sentidos”, lembra Leila
Lisemberg, integrante do comitê que apoia a doutora Montenegro.
“Foi duro” e “uma luta” são algumas das expressões usadas por moradores
ao descreverem os primeiros meses dos médicos na Venezuela. Para
Bernardino Albornoz, de 66 anos, que foi vigilante voluntário da obra de
um CAT na região de El Recreo, onde trabalha atualmente,
a dificuldade inicial se deve à “falta de mentalidade aberta”. “Os
atendimentos nas comunidades são direitos adquiridos por nós”, avalia.
Luis Isturiz, candidato a vereador pelo chavista PSUV (Partido
Socialista Unido da Venezuela) para o Distrito Metropolitano de Caracas,
que participou da recepção dos cubanos no 23 de Enero, conta que a
agressão contra os médicos foi “principalmente midiática”. “Eles
precisavam de segurança porque a oposição não os queria aqui e alegavam
que não eram médicos, que eram veterinários ou enfermeiros. A campanha
foi brava”, lembra, concluindo: “Mas a própria comunidade os defendia”.
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