quarta-feira, 22 de maio de 2013

China/História : Viagem aos arquivos da Cidade Proibida

Por | 15 Ago 2011 |
Português investiga há décadas os Ming e os Qing
Rui Magone conhece ainda a biblioteca do museu do palácio onde estão os livros imperiais. A percorrer documentos de 1600 a 1700, o investigador terá reescrito 10 a 20 mil páginas de chinês clássico. O século XVII marca o fim da dinastia Ming e o início da Qing. E Rui Magone leu um século de informação sobre os exames que versavam sobre os clássicos confucionistas

De manhã ao final da tarde, todos os dias, durante três anos. Rui Magone, professor com 46 anos, descreve os anos de investigação nos Arquivos da Cidade Proibida em Pequim, como parte do trabalho para a tese de doutoramento. Sinólogo de profissão e paixão, Rui Magone é um dos portugueses que há mais tempo se dedica à China. Desde 1986 a estudar a língua e a história, hoje lê fluentemente chinês, clássico ou moderno, caracteres tradicionais ou simplificados. Já passaram 26 anos desde que se propôs a aprender a China clássica. A tese de doutoramento, que durou de 1996 a 2001, debruçou-se sobre um tema que cria interrogações – o exame imperial de 1685.
Os Clássicos confucionistas
Porquê 1685 parece ser a pergunta natural. Mas ao falar com o professor percebe-se que a complexidade está no sistema de exames, tendo o ano sido escolhido como resultado de muitas horas a ler testes em chinês.
Quando chegou a Pequim para a investigação, já conhecedor do país onde viveu de 1986 a 1988, percebeu que a Cidade Proibida guardava muito mais documentos do que pensara. E que o esperavam longas horas de leitura. “Lia, relia e copiava à mão porque tirar fotocópias dos documentos era muito caro”, conta.
“Os documentos que circulavam entre o centro do Império, Pequim, e a periferia que eram as regiões, estão hoje no arquivo da Cidade Proibida”, explica. “Há documentos de todos os formatos em papel antigo, escritos à mão, uns de maneira regular e outros em caligrafia, e alguns são muito difíceis de ler.” A maior parte são folhas estreitas, em caracteres tradicionais, num chinês clássico e na vertical, no sentido da direita para a esquerda.
Rui Magone conhece ainda a biblioteca do museu do palácio onde estão os livros imperiais. A percorrer documentos de 1600 a 1700, o investigador terá reescrito 10 a 20 mil páginas de chinês clássico. O século XVII marca o fim da dinastia Ming e o início da Qing. E Rui Magone leu um século de informação sobre os exames que versavam sobre os clássicos confucionistas.
“Os quatro livros clássicos – Analectos, Mencius, O Livro do Meio, e A Grande Doutrina – eram os principais daquele sistema, aos quais se juntava o Livro das Mutações”, explica. Os exames dirigidos a quem queria ascender a mandarim, os oficiais da burocracia imperial, aconteciam a cada três anos. Alguns tentavam a vida toda sem nunca conseguir entrar.
“Começavam a nível local e inicialmente iam dois milhões ao teste”, conta Rui Magone. “À segunda parte, ao nível provincial, passavam cerca de 30 mil. Desses, ao nível metropolitano passavam 1500 e ao nível do palácio restavam 300.” Todos os que chegavam ao exame final entravam na burocracia imperial.
A China do Imperador Kangxi
Representante Manchu, Kangxi era o imperador no ano 1685. Imperador de 1661 a 1722, foi o que esteve mais tempo no poder durante a dinastia Qing. Estima-se que a China, constituída por 18 províncias, tivesse 150 milhões de habitantes.
Rui Magone, conhecedor dos corredores da Cidade Proibida onde poucos entram, refere o imperador Kangxi como “muito interessado na cultura chinesa, mesmo sendo manchu, e um conhecedor da China clássica”. No último nível dos exames, na prova mais alta, era o Imperador que fazia as perguntas. “Uma pergunta podia ser – o que pensam das fronteiras do nosso território, devem expandir-se ou ficar como estão?”, conta o professor português, residente em Berlim.
Os temas dos exames no palácio eram sempre políticos e os candidatos tinham de escrever um ensaio final. A média de idade de quem entrava rondava os 40 a 45 anos. Sendo uma meritocracia, não havia ligações a estatuto social para se candidatar ou entrar. Mas, como o investigador salienta, quem vinha de famílias de letrados ou com relacionamentos com estas, teria mais facilidade nos estudos clássicos. “Era preciso ter muito saber”, acrescenta o professor.
A actual Cidade Proibida visitada por milhões de pessoas tem pouco a ver com a construção inicial de 1420. Apesar de datar da época Ming, a maior parte dos edifícios no seu interior é Qing.
A última dinastia da China imperial ficou marcada pela presença dos Jesuítas na corte imperial. E entre estes, vários portugueses. Em conjunto com o professor Henrique Leitão da Universidade de Lisboa, Rui Magone tem um outro projecto para decifrar o que se escrevia na China no século XVII sobre astronomia.
A riqueza histórica Qing, uma dinastia Manchu com forte presença de Jesuítas na corte imperial, é evidenciada também pelo contacto entre o Ocidente com o Oriente. Depois de ler um século de informação, o investigador português continua apaixonado pela história daquela época.
Os 12 Céus Jesuítas
“Foi o primeiro texto importante sobre astronomia europeia publicado na China”, conta o professor. Tian Wen Lue, ou o “Epítome de Questões sobre os Céus” foi publicado em 1615 em Pequim e escrito pelo jesuíta português Manuel Dias Júnior. “É um documento em chinês clássico para o qual Manuel Dias Júnior teve a ajuda de colaboradores chineses.” O documento de algumas páginas, que tem uma das versões originais na Biblioteca do Vaticano, foi redigido pelo jesuíta como explicação dos Céus para os chineses.
Henrique Leitão, historiador das Ciências e professor da Universidade de Lisboa e especialista em Ciências Jesuíta, está a comentar a tradução juntamente com Rui Magone, responsável por traduzir a obra. Através da Universidade de Lisboa e da Academia Chinesa das Ciências, os dois professores estão perto de terminar o projecto que começou em 2006. Depois de revista a tradução ao nível científico, será publicada em inglês.
“É um texto muito bem escrito e que pode ser lido ainda hoje sendo interessante para historiadores da Ciência em todo o mundo”, descreve Rui Magone. O Jesuíta português contava os doze Céus dos Jesuítas, uma ideia que dividia o Universo entre o céu máximo que era o paraíso e o céu mínimo que era a terra. Entre um e outro havia outros dez céus.
A riqueza histórica Qing, uma dinastia Manchu com forte presença de Jesuítas na corte imperial, é evidenciada também pelo contacto entre o Ocidente com o Oriente. Depois de ler um século de informação, o investigador português continua apaixonado pela história daquela época. “Por vezes as pessoas olham a Cidade Proibida com uns olhos orientalistas, como um palácio que ficou sempre da mesma maneira, não teve evolução ou desenvolvimento”, diz. “Há uma ideia que a China imperial não mudava, que não tinha aspectos modernos e só em 1840, com a Guerra do Ópio que a China começou a transformar-se”, acrescenta.
Entender a Cidade Proibida
Uma ideia que não está certa e que, em conjunto com outros académicos, colegas que leccionam na Alemanha, Rui Magone acredita que pode ser desconstruída. Um projecto sem fim é o que o professor chama ao novo trabalho que o vai trazer de volta aos arquivos imperiais. “Queremos reconstruir o horizonte epistémico da China Imperial, reconstruir como funcionava o império, o que fazia o imperador na Cidade Proibida, como era o dia a dia lá dentro, que problemas havia, que imagem é que a população tinha da Cidade Proibida, como é que a noção de Cidade Proibida foi construída na mente europeia através dos relatos dos jesuítas.” Para isto, os investigadores irão reler novamente todas as informações dos anos que vão de 1600 a 1700. “É um período que definimos”, diz Rui Magone, “o que não quer dizer que se houver um documento muito importante de alguns anos antes ou depois, não seja levado em conta”, termina.
Essencial é reler a história para a poder entender. E no final haverá livros para sair. Rui Magone tem um projecto-piloto em que vai analisar os 36 exames do palácio entre 1600 e 1700. Há muita documentação e o português quer dedicar-se a entender os pormenores das provas, como é que se passavam, quais eram as pessoas que estavam envolvidas, como é que avaliavam os exames, qual o papel que o imperador desempenhava nas provas, ou seja, fazer uma história muito detalhada dos exames no palácio imperial de 1600 a 1700.
Quantas horas mais faltam a ler documentos clássicos e a decifrar caracteres, o investigador não sabe. As estatísticas de quantas pessoas viveriam na Cidade Proibida durante aquele século não são convincentes do ponto de vista histórico. Entre mandarins, eunucos, concubinas, há todo um universo de relacionamentos humanos a estudar sobre aqueles que viviam à volta dos Imperadores. Rui Magone resume a ideia “o que queremos com o projecto é dizer – bem, se calhar não era uma China moderna mas era uma China que funcionava. E depois saber como é que ela funcionava e se também havia desenvolvimento, evolução.” E conclui “estamos a tentar construir uma narração diferente da história da China imperial”.
  


                                                                                Fonte: Hojemacau
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