A razão à prova das grandes crises históricas
Como explicar a grande crise histórica que
principia com a Revolução Francesa e que, um quarto de século mais tarde, é
concluída (provisoriamente) com o retorno dos Bourbons? Friedrich Schlegel e a
cultura a Restauração não cessaram de denunciar a "doença política" e o "flagelo
contagioso dos povos" que estrondeiam a partir de 1789; mas é o próprio
Metternich que alerta contra a "peste" ou o "cancro" que devasta os espíritos [1] . Para sermos mais exactos – indo mais longe do que
este outro ideólogo da Restauração que é Baader – estamos na presença de uma
"loucura de possessão satânica"; ao derrube do Antigo Regime sucedeu não a
democracia mais sim a "demonocracia" [2] , ou seja, o
poder de Satã. Mais tarde, após a vaga da revolução de 1848 e sobretudo
da revolta operária, Tocqueville vai desenvolver a abordagem psicopatologisante:
o que vai explicar a "doença da Revolução Francesa" é a propagação de um "vírus
de uma espécie nova e desconhecida" [3] . Nos seus
Souvenirs, referindo-se ao momento em que começa a subir a agitação que
desembocará nas jornadas de Junho, o liberal francês faz dizer a "um médico de
mérito que dirigia então um dos principais hospitais de loucos de Paris": "Que
infelicidade e como é estranho pensar que são loucos, verdadeiros loucos, que
provocaram isto! A todos operei ou tratei. Blanqui é um louco, Barbès é um
louco, Sobrier é um louco, Huber sobretudo é um louco, todos loucos, senhor, que
deveriam estar no meu [hospital de] Salpêtrière e não aqui". Tocqueville
acrescenta a seguir: "Sempre pensei que nas revoluções e sobretudo nas
revoluções democráticas, os loucos, não aqueles aos quais se dá este nome por
cortesia, mas os verdadeiros, desempenharam um papel político muito
considerável" [4] . A referência a forças de alguma forma
infernais não faltará daí em diante: nas jornadas de Junho, Tocqueville ouve
soar "uma música diabólica" nos bairros que se preparavam para resistir e que
convocam os habitantes à luta tocando a "generala". Os habitantes ouvem e
preparam-se com um "ar sinistro", perdendo seus traços humanos. Eis a agitar-se
de modo insensato uma "velha" que parece uma feiticeira: "A expressão odiosa e
terrível do seu rosto fez-me horror, tanto o furor das paixões demagógicas e a
raiva das guerras civis estavam nele bem representados". Na véspera da
Comuna de Paris, a abordagem psicopatológica celebra o seu triunfo com Taine:
"Se há para os corpos doenças epidémicas e contagiosas, há
também para os espíritos e esta é então a doença revolucionária. Ela se encontra
em simultâneo sobre todos os pontos do território e cada ponto infectado
contribui para a infecção dos outros [...] Em todas as partes as mesma febre, o
mesmo delírio e as mesmas convulsões indicando a presença do mesmo vírus, e este
vírus é o dogma jacobina". [5]
Não só a Comuna como todo o ciclo revolucionário francês é
posto na conta do "vírus" e da "alteração do equilíbrio normal das faculdades"
[6] . Lancemos um olhar a tal ou tal actor da
revolução: "O médico reconheceria de imediato um destes loucos lúcidos que não
encerra, mas que são os mais perigosos" (VII, 205). Com efeito, Marat
comporta-se como "seus companheiros [do hospital] de Bicêtre" (VII, 208). Como
se pode ver, passámos do Sapetrière de Tocqueville para o Bicêtre, mas a
explicação das crises revolucionárias continua a ser procurada nos hospícios.
Aos olhos de Taine também a loucura revolucionária tem algo de diabólico. Se
Voltaire é um "demónio encarnado", Saint-Just e o protagonista de uma espécie de
rito satânico: "Esmagar e subjugar torna-se uma voluptuosidade intensa,
saboreada pelo orgulho íntimo, um fumo de holocausto que o déspota queima no seu
próprio altar; neste sacrifício quotidiano, ele é em simultâneo o ídolo e o
padre, e oferece-se vítimas para ter consciência da sua divindade" [7] . O ciclo que principia na Rússia em 1905 é
comparável ao ciclo revolucionário francês. A cultura dominante vai então
reactualizar o "diagnóstico" já efectuado. O "vírus de uma espécie nova e
desconhecida" migra da França para a Rússia: é assim, num retorno explícito a
Tocqueville, que argumentam François Furet e o sovietólogo estadunidense Richard
Pires [8] . A leitura em termos
psicopatológicos das grandes crises históricas está de tal modo difundida
actualmente que até se pode observá-las nas categorias centrais do discurso
político. Em 1964, Adorno vê no "totalitarismo psicológico" o fundamento do
totalitarismo propriamente dito: há indivíduos que "não têm à sua disposição
senão um eu fraco e em consequência têm necessidade, como substitut, da
identificação com um grande colectivo e da sua cobertura". Não só desvanece-se
assim a situação objectiva, a geopolítica e a história, mas os próprios
ideólogos não desempenham qualquer papel: "Os caracteres submetidos à autoridade
são avaliados de modo totalmente erróneo ainda que sejam construídos a partir de
uma ideologia político-económica determinada" [9] .
A deriva
psicologista acaba por emergir também em Arendt. Com efeito, é recorrente nas
Origens do totalitarismo a denúncia do "desprezo totalitário pela
realidade e pelos próprios factos", pela "loucura" que a "sociedade totalitária"
demonstra. Esta não é a busca com métodos brutais e sem nenhum escrúpulo moral
de objectivos em todo caso logicamente compreensíveis. Não, no totalitarismo
tratamos dos "paranóicos" (10): "A agressividade do totalitarismo não nasce do
apetite de poder e o seu expansionismo ardente não visa a expansão para si
mesmo, não mais do que o lucro; suas razões são unicamente ideológicas: trata-se
de tornar o mundo mais coerente, de provar o bom fundamento do seu mau
entendimento" (p. 810). Por outras palavras, o totalitarismo é a loucura que
quer a loucura. Eis-nos chegados de alguma forma à cultura da
Restauração, como se verifica a partir de um pormenor ulterior. Quanto aos
"regimes totalitários" (não só o regime hitleriano como também o staliniano),
Arendt faz intervir a categoria de "mal absoluto", que já não podem mais
explicar "as vis motivações do interesse pessoal, da culpabilidade, da cobiça,
do ressentimento, do apetite de potência e da covardia" (p. 811) e que portanto
não pode ser explicado racionalmente. O Satã de que fala a cultura da
Restauração é aqui tornado o mysterium iniquitatis. Mas porque a
abordagem psicologisante deve ser considerada como errónea e mistificadora?
Vejamos o que se passa nos Estados Unidos, nas vésperas da Guerra de Secessão,
ou seja, deste trágico conflito que acaba por desembocar numa revolução
abolicionista. Nos campeões do Sul escravocrata, comparam-se os abolicionistas
aos jacobinos, eles próprios afectados pela loucura. Mas ocorre aqui uma
novidade. Faz-se também um diagnóstico psicopatológico para os escravos. O
número dos escravos fugitivos aumenta e os ideólogos da escravatura espantam-se:
como é possível que pessoas "normais" se subtraiam a uma sociedade tão bem
ordenada? Eis-nos claramente na presença de um espírito perturbado. Mas de que
se trata? Em 1851, Samuel Cartwright, eminente cirurgião e psicólogo da
Luisiânia, partindo do facto de que em grego clássico drapetes é o
escravo fugitivo, conclui triunfalmente que a perturbação psíquica que leva os
escravos negros à fuga é precisamente a drapetomania [11] . Outros ideólogos constatam que os escravos não
obedecem mais às ordens dos mestres com a mesma celeridade anterior. O
diagnóstico psicopatologisante intervém de novo: a doença em questão é agora a
"disestesia", ou seja, a incapacidade dos escravos para compreender e
reagir com celeridade às ordens do mestre [12] .
No
século XIX vemos desenvolver-se uma outra revolução, a revolução feminista. E
novamente caímos na denúncia da loucura e da degenerescência que estaria na base
desta novidade incrível. É um grande filósofo, Friedrich Nietzche, que fala das
protagonistas desta revolução como mulheres falhadas que desconhecem a sua
natureza de mulheres e são mesmo incapazes de engendrar: "Emancipação da mulher
– eis o que é o ódio instintivo da mulher falhada, ou seja, incapaz de procriar,
contra a mulher de bom comportamento". A polémica contra o movimento feminista é
tão rude que leva o filósofo a declarações de um filistinismo desarmante. As
"emancipadas" seriam "mulheres fracassadas" ou então "aquelas que não o estofo
para terem filhos" [13] . Pode-se tirar uma
conclusão: historicamente, não se encontra desafio à opressão que não tenha sido
taxado de loucura, de deformação da saúde e da normalidade. De resto, o
diagnóstico psicopatologisante caracteriza-se pelo seu lado arbitrário. Pode-se
constatá-lo até nos grandes autores. Em 1950, ao publicar seus estudos sobre a
"personalidade autoritária", Adorno sublinha a "correlação entre anti-semitismo
e anti-comunismo" e acrescenta a seguir: "Durante os últimos anos todo o
mecanismo de propaganda na América foi consagrado a desenvolver o anti-comunismo
no sentido de um "terror" irracional" [14] . Naquele
momento, aqueles que foram afectados por perturbações psíquicas eram os
anti-comunistas; em 1964, em contrapartida, Adorno inserirá exactamente os
comunistas, com os fascistas, entre as personalidades intrinsecamente
autoritárias e inclinadas ao totalitarismo! O diagnóstico
psicopatologisante toma habitualmente como alvo os campeões da revolução, nunca
os da guerra Também vale a pena notar que o diagnóstico
psicopatológico toma habitualmente como alvo os campeões da revolução, nunca os
da guerra. Os loucos são Robespierre e os jacobinos, mas não os girondinos
feitores da guerra, cujas consequências devastadora para a liberdade civil e
política são denunciadas de modo antecipado e com uma grande lucidez exactamente
por Robespierre. Os loucos são os bolcheviques que invocam a Revolução para por
fim à carnificina da Primeira Guerra Mundial, não aqueles que, prolongando a
participação da Rússia nesta carnificina, não hesitam em sacrificar milhões de
pessoas e em provocar no país uma crise política, económica e social de
proporções espantosas. Mais ainda, a Primeira Guerra Mundial é saudada não só na
Rússia mas em todo o Ocidente como um momento de regeneração espiritual
exaltante e os maiores intelectuais da época empenham-se nesta obra de
celebração e de transfiguração. Finalmente. Vimos Tocqueville
identificar na obra de um "vírus de uma espécie nova e desconhecida" a causa do
interminável ciclo revolucionário francês. Mas porque o autor desta explicação
não poderia ser submetido, também ele, a um diagnóstico psicopatológico? Para
demonstrar a loucura da "raça de revolucionários que parece nova no mundo" e que
está a actuar em França, ele observa que esta "não só pratica a violência, o
desprezo do direitos individuais e a opressão das minorias, mas, o que é novo,
professa que assim deve ser" (II, 2, p. 337). E vejamos agora como o liberal
francês celebra a primeira guerra do ópio:
"Trata-se de um grande acontecimento, sobretudo se se sonha que
não é senão a sequência, o último termo de uma multidão de acontecimentos da
mesma natureza que, todos eles, empurram gradualmente a raça europeia para fora
da sua casa e submetem sucessivamente ao seu império e à sua influência todas as
outras raças [...]; é a submissão de quatro partes do mundo pela quinta. Não
difamemos nosso século e nós próprios; os homens são pequenos mas os
acontecimentos são grandes".
Ou então vejamos qual comportamento Tocqueville sugere ao
exército francês empenhado na conquista da Argélia:
"Destruir tudo o que se pareça a uma agregação permanente de
população, ou por outras palavras, a uma cidade. Creio da mais alta importância
não deixar subsistir ou elevar-se nenhuma cidade nos domínios de Abd-el-Kader"
(o líder da resistência)." [15]
Nestas
duas declarações ressoa esta celebração da violência e da lei do mais forte de
que se censura a "raça dos revolucionários" em acção em França. Por outras
palavras, é de modo não só arbitrário mas também dogmático que procedem os
fazedores da abordagem psicopatológica: eles não aplicam a si mesmos os
critérios que fazem valer para os outros. Poder-se-ia objectar com Furet
que o carácter patológico da violência jacobina (e bolchevique) reside no facto
de que ela devora os seus próprios filhos. Se não fosse a dialéctica de Saturno
que está bem presente na Reforma protestante na primeira revolução inglesa e que
se manifesta também, com modalidades particulares, na revolução americana. Por
ocasião da Guerra de Secessão, os dois campos reclamam-se da luta pela
independência conduzida em conjunto contra a Coroa inglesa. Os abolicionistas
referem-se ao princípio proclamado pela Declaração de independência segundo a
qual "todos os homens foram criados iguais" e ao incipit solene da
Constituição de Filadelfia na qual o "povo dos Estados Unidos" declara querer
ulteriormente "aperfeiçoar a União". A propaganda da Confederação reivindica a
herança da luta dos patriotas contra um poder central opressivo, sublinha a
centralidade do tema dos direitos de cada estado singular no processo de
fundação e na tradição jurídica do país, e observa que Washington, Jefferson e
Monroe eram todos proprietários de escravos. Os dois campos opostos declaram
avançar no rastro dos Pais Fundadores, mas isso não evita o choque e o torna
mesmo mais rude. Não há dúvida: também neste caso, Saturno devora os seus
filhos. É preciso notar igualmente que os colonos americanos
protagonistas da guerra de independência contra o governo de Londres são
definidos pelos seus contemporâneos ingleses, quer num julgamento positivo ou
negativo, como "os dissidentes do desacordo". E se Burke denuncia a "doença"
francesa desde a primeira da revolução [16] , Mallet
du Pan põe em causa nesta revolução a "inoculação americana" [17] . Como se vê, a remessa à dialéctica de Saturno e à
psicopatologia para explicar as revoluções não esperou o jacobinismo para vir à
luz! Mas coloquemos agora uma pergunta: qual é o ponto de partida da
loucura ideológica que teria assolado primeiro o ciclo revolucionário francês e
depois o ciclo revolucionário russo? Furet, tal como Pipes, partem da França das
Luzes e das sociedades de pensamento. E é do mesmo modo que argumenta Taine, que
vimos criticar Voltaire como demónio incarnado e que vê a França revolucionária
"intoxicada pela má aguardente do Contrato Social" de Rousseau [18] . Pode-se agora considerar como terminada a
investigação para trás das origens do maldito vírus revolucionário? Nada disso!
Bem antes da revolução que em França liquida o Antigo Regime, verifica-se na
Alemanha a Guerra dos Camponeses que, conduzidos por Müntzer, insurgem-se contra
os senhores feudais e querem abolir a servidão de gleba. Os protagonistas desta
revolução são estigmatizados por Lutero como "profetas loucos" (tolle
Propheten) que excitam a "populaça louca" (tolle Pöbel), como
"visionários" (Schwärmerer, Geister, Schwarmgeister), loucos que perderam
totalmente o sentido da realidade [19] . Mas esta
campanha contra o ex-discípulo que se tornou louco não impede Lutero de ser por
sua vez classificado por Nietzche entre os "espíritos doentes", a saber, entre
os "epilépticos das ideias" (com Savonarole, Luther, Rousseau, Robespierre et
Saint-Simon) ( O Anticristo, 54). Sim, segundo Nietzche, para encontrar as primeiras
origens da doença revolucionária convém remontar bem mais para trás do que o
fazem os críticos habituais da revolução: a loucura que desejaria o advento de
um mundo perfeito e igualitário e que condena a riqueza e o poder enquanto tais
começou a manifestar-se já com o cristianismo e mesmo, ainda antes, com os
profetas judeus. Convencido da longa duração do ciclo revolucionário que assola
o Ocidente, Nietzche convida a proceder finalmente ao acerto de contas com
"estes milhares de anos de um mundo de choças" e com as "doenças mentais" que o
assolam a partir do "cristianismo" (O Anticristo, 38). Poder-se-ia ler
esta conclusão como a involuntária reductio ad absurdum da interpretação
psicopatologisante do conflito político e, em particular, das grandes crises
históricas. Mas não esqueçamos que Nietzche declara ter "passado pela escola de
Tocqueville e de Taine" (B, III, 5, p.28), e que tem com este último relações
epistolares marcadas por uma estima recíproca [20] .
Nos nossos dias, igualmente, na esteira do filósofo alemão, um ilustre
historiador das religiões (Mircea Eliade) e um eminente filósofo (Karl Löwith)
explicam a loucura sanguinária do século XX partindo de longe, de muito longe:
tudo teria começado em tempos bastante recuados com a recusa do mito do retorno
eterno e com o advento da visão unilinear do tempo e da fé no progresso que a
acompanha: tudo teria começado com, uma vez mais, a afirmação da cultura judia e
cristã. A tendência para liquidar as grandes crises históricas (e em última
análise a história universal) enquanto expressões de loucura caracteriza a
cultura actual de modo talvez ainda mais forte do que a cultura da Restauração.
Mas como explicar o facto de que as explosões de loucura manifestam-se
mais frequentemente e numa escala mais vasta em certos países do que em outros?
Conhece-se em Tocqueville a tendência para celebrar um sentido moral e prático
superior e um mais forte apego à liberdade que caracterizariam os cidadãos
estado-unidenses, em oposição aos franceses. Quer dizer que a leitura
psicopatológica do conflito tende a desembocar numa leitura de cariz etnológico
(e de tendência racial). É uma tendência que se manifesta também fortemente na
historiografia e na cultura contemporânea. Segundo Norman Cohn (2000, p. 21), a
Inglaterra "faz-se notar por uma ausência quase total de tendências
chiliásticas" e de " chiliaísmo
revolucionário", que em contrapartida assolam a França e a Alemanha [21] . Mais radical na deriva etnológica (e, em última
análise, racial) é Robert Conquest (2001, p.15), que vê na França e na Rússia (e
na Alemanha) os lugares das "aberrações mentais", das quais em contrapartida
estão imunes as revoluções inglesa (não se fala senão da Revolução Gloriosa de
1688) e americana. Além disso, a civilização autêntica encontra sua expressão
mais acabada na "comunidade de língua inglesa" e o primado desta comunidade tem
seu fundamento étnico preciso, constituído pelos "angloceltas" [22] . Então coloca-se aqui uma questão: por o culto dos
"angloceltas" deveria ser mais aceitável do que o culto dos "arianos",
particularmente caro aos nazis? Pois. Para se dar conta do absurdo da
remessa à psicopatologia basta reflectir no facto de que o carácter catastrófico
da crise revolucionária na Rússia foi previsto com décadas de antecipação por
autores muito diferentes entre si. Em 1811, na São Petesburgo ainda abalada pela
revolta camponesa de Pugatchev, Maistre vê perfilar-se uma revolução (desta vez
apoiada por "Pougatcheve de Universidade", isto é, por intelectuais de origem
popular) de uma amplitude e de uma radicalidade de fazer empalidecer a Revolução
Francesa. Em 1859 previne: se a nobreza continuar a se opor a uma emancipação
real dos camponeses, emergirá um cataclismo social "sem precedentes na
história". Em 1905, mesmo o primeiro-ministro russo Serge Witte exprime-se em
termos semelhantes! Podem-se fazer considerações análogas para a crise
que na Alemanha acabou no advento de Hitler ao poder. Pouco tempo após a
assinatura do Tratado de Versalhes, o marechal Ferdinand Foch observa: "isto não
é a paz, isto não é senão um armistício para vinte anos". O imperialismo alemão
não ia tardar em tentar a sua desforra; e ele vai tanto mais facilmente obter um
consenso de massa na medida em que os vencedores da Primeira Guerra Mundial se
mostram vindicativos e míopes. Neste mesmo período o grande economista John
Maynard Keynes, que fez parte da delegação inglesa em Versalhes, põe em guarda
contra as consequências de uma "paz cartaginesa":
"A vingança, ouso prever, não tardará. Nada poderá então
retardar por muito tempo esta guerra civil final entre as forças da reacção e as
convulsões revolucionárias desesperadas; face a que os horrores da última guerra
alemã desaparecerão no nada e destruirão, qualquer que seja o vencedor, a
civilização e o progresso da nossa geração". [23]
Portanto: "Que o céu nos proteja a todos!" Uma prova de força
ia-se perfilando para a hegemonia ainda mais brutal e bárbara que do que aquela
que se havia desencadeado no decorrer do primeiro conflito mundial. O
nazismo caracteriza-se também por sua pretensão a retomar a tradição colonial
para realizá-la também, nas suas formas mais bárbaras, na Europa oriental. Pois
bem, a partir já do século XIX a cultura europeia mais avançada colocou-se uma
questão angustiante: o que teria acontecido se os métodos de governo e de guerra
em acção nas colónias tivessem acabado por se impor também nas metrópoles? O
próprio genocídio dos judeus não acontece de modo de algum de modo improvisado.
Basta-nos dizer que na Rússia devastada pela guerra civil, os judeus,
estigmatizados como fantoches do bolchevismo, tornam-se as vítimas de massacres
desencadeados pelas tropas brancas apoiadas pela Entente: isto é o prelúdio –
observam eminentes historiadores – do que será a seguir a "solução final" [24] . Concluamos. A leitura psicopatologisante
das grandes crises históricas permite por um lado liquidar como uma expressão de
loucura o gigantesco processo de emancipação que vai da Revolução Francesa (das
Luzes mesmo) à Revolução de Outubro; por outro lado, ela atribui o Terceiro
Reich a uma personalidade doente individual (Hitler), absolvendo indirectamente
o sistema político-social e a tradição ideológica que o produziram. A crítica da
leitura psisopatologisante (mesmo demonológica) das grandes crises históricas é
um hoje um dever essencial da crítica da ideologia e da luta pela razão.
[1] cf. Heinrich von Treitschke,
Deutsche Geschichte im neunzehnten Jahrhundert, Leipzig, 1879-1894, vol. III, p.
153. [2] Benedikt F. X. von Baader, Sämtliche Werke, présenté par F.
Hoffmann et alt. (Leipzig 1851-1860), réédition anastatique, Scientia, Aalen,
vol. 6, pp. et 26. [3] Alexis de Tocqueville, Œuvres complètes, présentées
par J. P. Mayer, Gallimard, Paris, 1951 et suivantes, vol. XIII, 2, pp. 337-38.
[4] Pour les Souvenirs nous renvoyons le lecteur à l'anthologie de
Tocqueville de F. Mélonio et J. C. Lamberti, Laffont, Paris, 1986, pp. 798 et
812. [5] Hippolyte Taine, Les origines de la France contemporaine (1876-94),
Hachette, Paris, 1899, vol. 6, p. 64. [6] Ibidem., vol. 5, pp. 21 et
suivantes. [7] Ibidem.,vol. 7, pp. 205, 208 et 347-8 et vol. 1, p. 295.
[8] Domenico Losurdo, Le révisionnisme en histoire. Problèmes et mythes,
traduit de l'italien par Jean-Michel Goux, Albin Michel, Paris, 2006, chap. 1,1.
[9] Theodor W. Adorno, Eingriffe. Neun kritische Modelle, Suhrkamp,
Frankfurt a. M., 1964, pp. 132-3. [10] Hannah
Arendt, The Origins of Totalitarianism (1951) Harcourt, Brace & World, New
York, 3° ed., 1966, pp. 457-9. [11] Cf. Emily Eakin, Is Racism Abnormal ? A
Psychiatrist Sees It as a Mental Disorder, in International Herald Tribune du 17
janvier 2000, p. 3. [12] Wyn C. Wade, The Fiery Cross. The Ku Klux Klan in
America, Oxford University Press, New York-Oxford, 1997, p. 11. [13] Ecce
Homo, « Pourquoi j'écris de si bons livres ». [14] Cf. Theodor W. Adorno,
Studies in the Authoritarian Personality, in Id., Gesammelte Schriften,
Suhrkamp, Frankfurt a. M., vol. 9, 1, p. 430. [15] Alexis de Tocqueville,
Œuvres complètes, cit., vol. 2, 2, p. 337 ; vol. 6, 1, p. 58 et vol. 3, 1, p.
229. [16] Domenico Losurdo, Controstoria del liberalismo, Laterza,
Roma-Bari, 2005, chap. VIII, § 7. [17] Alphonse Aulard, Histoire politique
de la Révolution française (1926), Scientia, Aalen (reproduction anastatique),
1977, p. 19, note 1. [18] Cf. Hippolyte Taine, Les origines de la France
contemporaine, cit., vol. 4, p. 262. [19] Martin Luther, Ermahnung zum
Frieden auf die zwölf Artikel der Bauernschaft in Schwaben (1525), in Die Werke,
présenté par Kurta Aland, Klotz-Vandenhoeck & Ruprecht, Stuttgart-Göttingen,
1967, vol. 7, pp. 165, 168, 174 et 180 ; Martin Luther, Daß diese Worte : Das
ist mein Leib etc. noch feststehen. Wider die Schwarmgeister (1527), in Werke,
présenté par Diaconus Dr. Buchwald et alt., Schwetschke, Braunschweig, 1890,
vol. 4, pp. 342 et suivantes. [20] Domenico Losurdo,
Nietzsche, il ribelle aristocratico. Biografia intellettuale e bilancio critico,
Bollati Boringhieri, Torino, 2002, cap. 28, § 2 . [21] Cf. N. Cohn, The
Pursuit of the Millennium (1957), tr. it., de Amerigo Guadagnin, I fanatici
dell'Apocalisse, Comunità, Torino, 2000, p. 21. [22] R. Conquest,
Reflections on a Ravaged Century (1999), tr. it., de Luca Vanni, Il secolo delle
idee assassine, Mondadori, Milano, 2001, pp. 15, 275 et suivantes et 307.
[23] John M. Keynes, The economic consequences of the peace (1920), Penguin
Books, London, 1988, pp. 56 et 267-68. [24] Cf. Domenico Losurdo, Staline.
Histoire et critique d'une légende noire, traduit de l'italien par Marie-Ange
Patrizio, Aden, Bruxelles, 2011, chap. 3, 1 et 5, 6. [*] Professor de história da filosofia da Universidade de
Urbino (Itália). Dirige desde 1988 a Internationale Gesellschaft Hegel-Marx für
Dialektisches Denken e é membro fundador da Associazione Marx XXIesimo secolo.
Extracto de Psicopatologia e demonologia: A leitura das grandes
crises históricas da Restauração aos nossos dias, ensaio publicado na
revista Belfagor. Rassegna di varia umanità, dirigida por Carlo
Ferdinando Russo, Editions Leo S. Olschki, Florence, Maço 2012, p. 151-172.
Como se sabe, a Belfagor encerrou. Com esta homenagem agradeço ao meu
amigo Carlo Ferdinando Russo e a toda redacção pela hospitalidade que me foi
seguidamente oferecida. Domenico Losurdo.
O original encontra-se em http://domenicolosurdo.blogspot.fr/ e a versão em francês em http://www.voltairenet.org/article177087.html
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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