terça-feira, 15 de novembro de 2011

Racismo: o negro e as condições de sua inserção no mercado de trabalho brasileiro no final da década de 90

 


Resumo
Este artigo tem por princípio contribuir criticamente para o debate em torno do racismo brasileiro, que se revela mais explicitamente no mercado de trabalho. Por meio de um pequeno diagnóstico, procurar-se-á confirmar a imensa dificuldade da luta em prol de uma legítima democracia, da igualdade de condições e oportunidades para a população negra, visto tamanha injustiça social, econômica e política entre classes, gêneros e raças, contradições estas intrínsecas ao próprio modelo capitalista de organização e reprodução da vida objetiva e subjetiva.

Palavras-chave: racismo, mercado de trabalho, democracia

Abstract
This article has for beginning to contribute critically for the debate around the Brazilian racism, that is revealed in the labor market. By means of a small diagnosis, it will try to confirm the immense difficulty of the fight by legitimate democracy, of the equality of conditions and opportunities for the black population, sees the depth social, economic injustice and politics among classes, genders and races, contradictions these intrinsic ones to the own model organization capitalist and reproduction of the objective and subjective life.
Key-words: racism, labor market, democracy
1 Introdução
O racismo no Brasil se apresenta como um dos grandes desafios a serem superados pela população negra, já que esta condição, acrescida da distribuição injusta da riqueza e dos inúmeros benefícios gerados pela política econômica à classe dominante, notadamente “branca”, relegam a grande maioria negra a condições extremamente precárias de sobrevivência.
Acredita-se que a luta política pela igualdade entre negros e “brancos” não está desconectada da luta pelo fim de uma sociedade que tende a homogeneizar culturas, hierarquizar e coisificar as relações entre as pessoas que, em última instância, estão condenadas a serem reduzidas simultaneamente a consumidores e mercadorias. Assim sendo, para que homens e mulheres sejam humanamente emancipados – já que a emancipação política já ocorreu – e tenham todos as mesmas condições de desenvolver suas potencialidades e uma autêntica individualidade, se faz necessário, antes de tudo, repensar radicalmente este modelo de organização da vida econômica, social e política.
Nesta análise parte-se do pressuposto de que a esfera da luta política é expressão direta do modelo econômico adotado, sendo impossível alterar àquela significativamente em prol de uma maioria subjugada, independentemente da cor da pele e do gênero, sem que o campo de reprodução da vida, ou seja, a estrutura econômica e produtiva seja alterada em profundidade.
O sistema capitalista e suas características imanentes: a centralização e acumulação do capital e, conseqüentemente, a miséria, a pobreza e o desemprego gerados por essa lógica; a concorrência; o consumo desenfreado e generalizado que impulsionam as mudanças nas estruturas das necessidades humanas; a divisão do trabalho e suas hierarquizações que limitam as alternativas de sobrevivência para os indivíduos singulares, que independentemente de suas características pessoas, são obrigados a disputarem uns com os outros, em uma “arena” denominada “livre mercado”, no qual as próprias pessoas estão expostas à venda como mercadorias.
Em um texto sobre o capitalismo tardio e a sociabilidade moderna, Mello e Novais tecem uma argumentação que vem corroborar com o exposto acima:
[...] O capitalismo cria a ilusão de que as oportunidades são iguais para todos, a ilusão de que triunfam os melhores, os mais trabalhadores, os mais diligentes, os mais “econômicos”. Mas, com a mercantilização da sociedade, cada um vale o que o mercado diz que vale. Não há nenhuma consideração pelas virtudes, que não sejam as “virtudes” exigidas pela concorrência, a ambição pela riqueza e a capacidade de transformar tudo, homens e coisas, em objeto de calculo em proveito próprio. No entanto, a situação de partida é sempre desigual, porque o próprio capitalismo, a própria concorrência, entre as empresas e os homens, recria permanentemente assimetrias entre os homens e as empresas [...] (MELLO e NOVAES, 1999, p.581-582).
Contudo, é preciso reafirmar que o Estado, ou seja, a organização política e legal é expressão dessa lógica econômica que acaba legitimando essa condição por meio dos mais poderosos mecanismos ideológicos como as instituições educacionais e os meios de comunicação de massa, etc.
Sendo assim, ao se tratar da discriminação racial no Brasil ou no mundo, não se deve perder de vista todo esse contexto, que em última instância, determina e hierarquiza a forma de relacionamento entre homens e mulheres, crianças, jovens e idosos, negros e “brancos”.
Embora, como já mencionado, não seja dicotômica a relação entre política, ideologia e cultura de um lado e economia de outro, por questões didático-metodológicos inicia-se o diagnóstico do racismo no Brasil a partir da esfera econômica, tendo em vista o comportamento e as tendências do mercado de trabalho no final da década de 1990. Em seguida será analisada, de maneira bastante sintética, os limites das ações políticas principalmente daquelas voltadas as ações afirmativas, que são encaradas neste artigo como paliativos, isto é, medidas pouco efetivas na luta contra o racismo, mas as únicas ações possíveis no interior do sistema capitalista. Estas ações imediatamente realizáveis são importantes em curto prazo pois evidenciam algum tipo de mobilização (mesmo que tenham origem na solidariedade burguesa cristã), mas em longo prazo, podem ser altamente nocivas para a luta em prol da emancipação humana já que a estrutura de exploração da vida não é destruída, a lógica dessa forma de organização social permanece e é constantemente reposta.
2 A população negra e o mercado de trabalho no Brasil do final dos anos 90
O DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos – publicou em 2001 um estudo que revelou a situação do mercado de trabalho no Brasil e suas peculiaridades durante a década de 1990. Isto porque estes anos se caracterizaram pelo crescimento insignificante do PIB, altas taxas de desemprego, e a crescente precarização das condições de trabalho, terceirizações, subcontratações, crescimento do setor informal intensificando a heterogeneidade deste mercado de trabalho (Alves, 2000; Antunes, 1999; Malaguti, 2000).
Contudo, uma pequena parte deste diagnóstico foi dedicado à discriminação racial no mundo do trabalho brasileiro, ainda muito pouco estudada pelos institutos de pesquisa em geral.
Desta forma, afirmam que,
[...] as escassas avaliações realizadas recentemente tem cumprido um papel relevante para o entendimento da realidade nacional, pois, quando associadas a outras investigações que fogem a visão tradicional e homogênea do trabalhador, apontam quem são os desiguais, entre os quais, não raro, a maioria é afro-descendente [...] (DIEESE, 2001, p.127)
Sem dúvida nenhuma, alguns destes dados estatísticos que aqui serão analisados revelam o quão camuflado é o racismo brasileiro, desmistificando a tão mencionada “democracia racial”.
No interior de um sistema econômico totalizador, imanentemente concentrador do lucro advindo da exploração do trabalho não remunerado (mais-valia), que hierarquiza as relações entre humanos e coisas, em que posição na estrutura de relações sociais seriam dispostas as pessoas que historicamente foram relegadas à condição de escravos, pois considerados inferiores pelo fato de serem negros? A resposta óbvia, segundo a lógica do próprio sistema, seria a de colocá-los na parte mais baixa da pirâmide social.
Por este motivo, considera-se que
[...] o mercado de trabalho é uma das esferas em que se distingue com mais clareza a eficiência dos mecanismos discriminatórios no Brasil, assim como seu modo sutil de operar. Pois, ocultado por fatores aparentemente objetivos, derivados de novas e tradicionais exigências produtivas, velhas questões permanecem: os indivíduos negros estão sujeitos mais ao desemprego, permanecem mais tempo nesta situação e, quando tem trabalho, lhe são reservados postos de trabalho de menor qualidade, status e remuneração [...] (DIEESE, 2001, p.127-128)
Em se tratando da inserção da população negra no mercado de trabalho no ano de 1999, tendo em vista as seis regiões metropolitanas estudas pela PED – Pesquisa de Emprego e Desemprego, os negros representavam 41,3% do total da População em Idade Ativa (PIA), que compreende as idades de 10 a 40 anos ou mais. Ao analisar separadamente as regiões, constatou-se que em Salvador os negros eram a grande maioria 82,4% da PIA, seguida por Recife 65,2%, Distrito Federal 58,8%, Belo Horizonte 53,3%, São Paulo 31,4% e Porto Alegre 10,4% (DIEESE, 2001, p.129).
Esses dados confirmam o processo histórico de formação econômica e social, no qual os grandes latifúndios, fundamentados pelo trabalho escravo, estavam em sua maioria concentrados na região nordeste do Brasil. Neste caso, explica-se a maior concentração da população negra nestas regiões.
O estudo também revela a taxa de participação da população negra no mercado de trabalho. Fica evidente ser a participação dos negros superior a dos “não-negros”[1] nas idades entre 10 a 24 anos e também acima dos 40 anos de idade. Já na idade considerada mais produtiva pelo mercado (de 25 a 39 anos) os “não-negros” aumentam a sua taxa de participação no mercado de trabalho, chegando a ser maior em relação aos negros em Recife, Salvador e São Paulo.
Tabela 1- Taxas de participação da PIA específica segundo cor e faixa etária - Regiões metropolitanas – ano 1999 (em %).
Regiões Belo Horizonte
Distrito Federal
Porto Alegre
Faixa etária
Total
Cor Negra
Cor Não Negra
Total Cor Negra Cor Não Negra Total Cor Negra Cor Não Negra
Total 57,2 57,9
56,4
62,0 62,7 60,9 58,3 59,5 58,2
10 a 15 anos 7,4 8,0
6,5
6,4 6,9 5,6 7,7
(1)
7,4
16 a 24 anos 67,3 69,8 64,3 68,1 69,7 65,6 69,6 69,0 69,7
25 a 39 anos 79,8 79,5 80,2 85,4 85,9 84,7 82,0 82,70 81,9
40 anos e + 50,8 52,0 49,6 57,8 59,0 56,3 53,0 56,4 52,6
Regiões Recife Salvador São Paulo
Faixa etária
Total
Cor Negra
Cor Não Negra
Total
Cor Negra
Cor Não Negra
Total
Cor Negra
Cor Não Negra
Total 54,0 54,3 53,5 62,0 60,7 57,8 58,3 59,5 58,2
10 a 15 anos 9,1 9,8 7,7 9,9
10,4
-(1)
7,7 (1) 7,4
16 a 24 anos 60,1 61,6 57,2 66,6 68,0 59,0 69,6 69,0 69,7
25 a 39 anos 77,2 76,8 78,0
84,4
84,3
85,1 82,6 82,1 82,8
40 anos e + 49,0 49,9 47,6 56,0 57,3 51,2 55,9 61,2 54,1
FONTE: DIEESE, 2001, p131
(1) A amostra não comporta desagregação para esta categoria
Obs: Negros = pretos e pardos. Não-negros = brancos e amarelos
Sendo assim, constata-se que os negros têm maior participação no mercado de trabalho nas faixas etárias mais extremas, antes dos 16 anos e depois dos 40 anos de idade, o que revela a maior necessidade desta população se inserir na infância no mercado de trabalho e, por outro lado, de permanecer por muito mais tempo do que os “não-negros” trabalhando.
[...] o fato de os indivíduos negros manterem uma mobilização para o trabalho maior que a dos demais segmentos étnicos da sociedade brasileira não tem revertido, necessariamente, em sucesso. Ao contrário, são os negros que sofrem mais com o desemprego [...] (DIEESE, 2001, p.134)
Pode-se confirmar com estes dados que quanto mais cedo o trabalhador se insere no mercado, menos tempo existe para o investimento em uma educação de qualidade, o que contribui de forma negativa para que este permaneça em ocupações precárias por muito mais tempo. Auferindo rendimentos abaixo do mínimo necessário a uma existência digna, é preciso permanecer trabalhando na velhice e requisitar o auxílio dos mais novos para aumentar a renda. Esse movimento se torna um círculo vicioso.
Outro dado revela que a taxa de desemprego em 1999 era elevada em todas as regiões metropolitanas onde a PED é realizada, sendo as mais baixas em Belo Horizonte (17,9% da PEA – População Economicamente Ativa – metropolitana), Porto Alegre (19,0% da PEA), e São Paulo (19,3% da PEA). As taxas mais altas estavam no Distrito Federal (21,6% da PEA), Recife (22,1% da PEA) e Salvador (27,7% da PEA).
Dividindo-se a taxa de desemprego de cada região entre negros e “não-negros”, verificou-se que em Belo Horizonte 19,4% da PEA negra estavam desempregados contra 16,3% da PEA “não-negra”, em Porto Alegre 26,4% da PEA negra estavam desempregados contra 18,0% da PEA “não-negra”, em São Paulo 24,3% da PEA negra contra 16,8% da PEA “não-negra”. Segundo análise do DIEESE, este fosso que escancara as condições desiguais entre negros e “não-negros” poderiam ser explicados pela presença numericamente inferior dos negros na região sul do país contribuindo para o alto índice de desemprego destes. Esta explicação seria convincente se não fosse diagnosticada essa mesma tendência das altas taxas de desemprego entre os negros nas regiões onde numericamente eles são maioria. Assim, no Recife 23,3% da PEA negra estavam desempregados contra 19,7% de desempregados da PEA “não-negra” e em Salvador 29,1% da PEA negra estavam desempregados contra 21,2% da PEA “não-negra”.
Tabela 2 - Taxa de desemprego por raça – Regiões metropolitanas em 1999 (em%).
Regiões Metropolitanas
Total
Raça
Negra
Não Negra
Belo Horizonte
17,9
19,4
16,3
Distrito Federal
21,6
23,2
19,3
Porto Alegre
19,0
26,4
18,0
Recife
22,1
23,3
19,7
Salvador
27,7
29,1
21,2
São Paulo
19,3
24,3
16,8
FONTE: DIEESE, 2001, p.135
Contudo, argumenta-se tendo em vista este panorama, que essa condição é devida ao baixo nível de escolaridade da população negra em relação aos “não-negros”. Este fato fortaleceria a crença de que por meio do acesso irrestrito do negro a uma educação de qualidade do ensino fundamental ao superior, suas condições de inserção no mercado de trabalho se igualariam positivamente ao dos “não-negros”. No entanto, quando comparada as taxas de desemprego por nível de escolaridade segundo a cor da pele, principalmente nas regiões onde os negros estão presentes em maior número, como no nordeste, de acordo com o DIEESE (2001, p.135), “é nítido que negros apresentam taxas de desemprego maiores que as verificadas para os não-negros com igual escolaridade”.
Mesmo que no quadro geral se note uma diminuição do desemprego entre negros e não-negros com grau superior, não se pode negar que em termos quantitativos a presença do negro é inexpressiva nas faculdades, o que influencia na diminuição desta distância estatística[2], ou mesmo possibilita uma inversão da tendência apresentada como no caso do Distrito Federal. Assim, fica evidente a preferência do mercado pelos considerados “brancos”.
Tabela 3 - Taxas de desemprego total, por nível de escolaridade, segundo a cor – Regiões metropolitanas – 1999 (em%).
Regiões
Cor
Analfabeto
Fundamental Incompleto
Fundamental Completo
Médio Incompleto
Médio Completo
Superior
Belo Horizonte Negra 16,7 21,3 20,3 26,6 15,7 6,9
Não Negra 13,4 19,9
19,6
25,4 14,3 6,7
Distrito Federal Negra
24,8
28,5
26,4
34,3
19,0
6,8
Não Negra
23,6
27,0
24,6
31,8
18,4
7,8
Porto Alegre Negra
(1)
28,9
26,9
(1)
19,6
(1)
Não Negra
(1)
21,1
19,9
26,6
15,0
8,9
Recife Negra
19,3
24,6
26,1
32,5
21,3
10,5
Não Negra
15,0
23,8
22,2
28,9
19,1
9,2
Salvador Negra
24,0
32,9
32,6
40,7
23,3
12,2
Não Negra
(1)
29,4
30,0
33,0
20,2
11,6
São Paulo Negra
22,6
25,1
27,3
33,6
19,2
10,4
Não Negra
18,1
19,5
20,7
27,2
15,8
8,0
FONTE:DIEESE, 2001, p.136
(1) A amostra não comporta desagregação para esta categoria
Somando-se a cor da pele, outras características acabam por agravar a situação da população negra no país como o fato de ser mulher e da já mencionada baixa escolaridade. Isso fica mais evidente quando se analisa a qualidade da “inserção ocupacional” dos negros em relação aos não-negros, ou seja, quem tem maior acesso a trabalhos com carteira assinada e todas as garantias e benefícios sociais derivados do vínculo empregatício.
Em 1999 os dados demonstravam que na hierarquia das relações sociais as mulheres de modo geral ainda estavam em desvantagem no mercado de trabalho tendo a maior taxa de participação em ocupações precárias (trabalhos domésticos, assalariados sem carteira assinada, autônomos que trabalham para o público, etc). Mas quando os dados são analisados a luz da cor da pele, mulheres e homens negros em maior número estão ocupando os postos de trabalhos mais vulneráveis, sendo que em regiões como Recife, Salvador e São Paulo, as mulheres negras são maioria nos trabalhos precários, superando a marca de 50% das ocupações em relação às mulheres consideradas brancas.
Tabela 4 – Proporção de ocupados em situação de trabalho vulneráveis por sexo e raça – Regiões metropolitanas – 1999 (em%)
Regiões
Negra
Não Negra
Total
Homens
Mulheres
Total
Homens
Mulheres
Belo Horizonte
39,6
33,2
47,8
32,7
27,7
36,3
Distrito Federal
34,7
26,7
43,1
25,1
19,2
30,5
Porto Alegre
39,1
30,8
47,4
33,8
30,0
38,5
Recife
47,5
40,6
57,3
39,5
34,3
45,0
Salvador
45,2
37,8
53,8
28,7
24,7
32,2
São Paulo
42,8
33,5
53,4
33,2
29,8
37,9
FONTE: DIEESE, 2001, p.138.
Sem dúvida vivemos numa sociedade tão racista quanto machista!
3 Os desafios da luta pela emancipação humana
Os dados que até aqui foram analisados descrevem sumariamente as características e as condições do campo de luta contra o racismo no Brasil. Vê-se que mesmo naquelas regiões metropolitanas nas quais a maioria da PIA (População em Idade Ativa) é negra, como Salvador e Recife, essa população sofre com a mesma intensidade ou mais as conseqüências das medidas que os discriminam e os segregam socialmente.
Mais uma vez é essencial destacar que mesmo com idêntica formação acadêmica ao “branco” a maioria dos negros não consegue ocupações de alta qualificação e confiança e quando consegue furar este bloqueio, não são remunerados da mesma forma que o “branco”, auferindo ganhos sempre menores.
Contudo, o que se pode fazer para que essa condição extremamente desigual e injusta possa ser eliminada? Quais as medidas que devem ser tomadas para que o negro tenha as mesmas oportunidades e condições que os “brancos” de manutenção, produção e reprodução da sua vida objetiva e subjetiva?
Infelizmente, as várias respostas obtidas ainda estão muito longe de resolver este dilema, até porque, no interior do sistema capitalista não há condições de todos os seres humanos em particular desfrutarem de todos os benefícios e riquezas produzidas socialmente. Esta forma de organização social é imanentemente injusta, excludente e hierarquiza as relações entre aqueles que detém o poder político, econômico e militar – a classe dominante –, e os dominados, aqueles que vivem do seu trabalho. “Malgrado as contradições sociais se manifestarem materialmente no espaço, não se pode, no entanto, esquecer que o espaço global de nossa época revela um amplo predomínio das relações de dominação [...]” (VESENTINI, 1990, p.14).
Contudo, é importante frisar que a lógica do sistema capitalista e suas contradições não teriam se expandido mundialmente não fosse a legitimidade política-legal conferida a este por meio do Estado burguês.
[...] O desenvolvimento do capitalismo e a produção do espaço não podem ser compreendidos sem ligações com o Estado. Desde a acumulação primitiva (séculos XVI, XVII e XVIII), processo deflagrador da produção e da sociabilidade capitalista, que o Estado vem se expandindo e multiplicando suas funções [...] Além da proteção de um mercado “nacional” pela fixação de fronteiras e política alfandegária, a ação estatal em prol da economia capitalista foi intensa e essencial: estabelecimento de regras que governam as relações sociais de produção internas à sua jurisdição [...]; a repressão – e o disciplinamento por variados instrumentos (inclusive o sistema escolar) – da força de trabalho, buscando adequá-la a racionalidade da produção capitalista [...] (VESENTINI, 1990, p.16)
Toda problemática em torno da mundialização ou expansão necessária do capitalismo fundamentada pelo Estado, traz a tona uma série de acontecimentos políticos-econômicos essenciais à efetivação desse objetivo, entre eles “a partilha e colonização da África e da Ásia pelas potencias européias” (VESENTINI, 1990, p.21).
Sartre no prefácio de “Os condenados da terra” de Fanon explicita o que significou a colonização para esta população.
[...] A violência colonial não tem somente o objetivo de garantir o respeito desses homens subjugados; procura desumanizá-los. Nada deve ser poupado para liquidar as suas tradições, para substituir a língua deles pela nossa, para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossa; é preciso embrutecê-los pela fadiga [...] Se resiste, os soldados atiram, é um homem morto; se cede, degrada-se, não é mais um homem; a vergonha e o temor vão fender-lhe o caráter, desintegrar-lhe a personalidade[...](SARTRE, 1979, p.9)
Os desdobramentos subjetivos da ação colonizadora já no início do século XIX causaram prejuízos irreparáveis à população negra em todo o mundo. Isto porque ainda hoje, mesmo com a independência formal dos países, o negro, o índio, não conseguiram se desvencilhar dessa herança histórica que os reduzem a uma categoria humana inferior.
Ao argumentar sobre a necessidade da descolonização, Sartre descreve que,
[...] Quando domesticamos um membro de nossa espécie, diminuímos o seu rendimento e, por pouco que lhe demos, um homem reduzido a condição de animal domesticado acaba por custar mais do que produz. Por esse motivo os colonos vêem-se obrigados a parar a domesticação no meio do caminho: o resultado, nem homem nem animal, é o indígena. Derrotado, subalimentado, doente, amedrontado, mas só até certo ponto, tem ele, seja amarelo, negro ou branco, sempre os mesmos traços de caráter: é um preguiçoso, sonso e ladrão, que vive de nada e só reconhece a força [...] (SARTRE, 1979, p.10)
Tendo em vista a supremacia ocidental norte-americana e branca, é correto afirmar que a humanidade ainda se encontra subjugada a mesma lógica colonialista de dominação política, militar, econômica e cultural. O Estado continua a ser um poderoso mediador, fundamental a legitimação desta lógica de expansão do ideário burguês.
Sendo assim, ao pensar na luta pela promoção da igualdade entre os seres humanos, e aqui especificamente entre negros e “brancos”, que tenha como principal parceiro o Estado burguês na luta contra a discriminação, deve-se levar em consideração que nenhuma medida estatal será tomada contrariamente à reprodução dessa lógica que se fundamenta pela exploração, dominação e acumulação do capital em escala planetária. Ou seja, esperar que o Estado nacional, por meio de medidas legais elimine de fato as injustiças e discriminações sociais, principalmente àquelas voltadas ao acesso a postos de trabalho, é no mínimo ingenuidade tendo em vista a natureza capitalista do Estado.
Ao ser incomodado por um movimento social organizado, mesmo que desarticulado regionalmente ou nacionalmente como o movimento negro, mas que de alguma forma consegue dar visibilidade aos graves problemas dessa população, que com base na constituição federal deveriam, mas não são tratados como cidadãos o Estado lhes concede algumas concessões que permite, em última instância, uma certa tranqüilidade a efetivação do projeto político neoliberal.
Estas concessões favorecem este ou aquele grupo social, mas não alteram em definitivo a sua condição, pois nada pode interferir negativamente nos interesses da classe dominante e no seu projeto de acumulação. Estas medidas, como as ações afirmativas, a descriminação positiva em prol dos negros, que em muitos casos são tratadas como soluções para os problemas das “minorias”, serão sempre paliativas, expressão de uma “vontade política” que jamais deve ser efetivada em sua totalidade.
Em se tratando do racismo no Brasil, são utilizados todos os tipos de argumentos que dizem respeito à habilidade, capacidade intelectual, formação, etc., para legitimar a não inserção do negro em ocupações qualificadas no mercado de trabalho. A ausência incontestável da população negra nos postos de trabalho mais qualificados e, portanto, nas classes de nível econômico mais elevado, e a divulgação destas informações impõe a mídia, a academia e ao governo a emergência moral, mesmo que superficial, de promover propostas que visem em longo prazo “a promoção da igualdade” nacional. No entanto, não deixam de ser ações imediatamente realizáveis, escolhas possíveis no interior das restritas alternativas socialmente criadas.
Valenzuela (1999, p.173), socióloga e consultora da OIT (Organização Internacional do trabalho), afirma que essas medidas se concentram “na orientação, na intermediação e na capacitação para o trabalho, com admissão focalizada”.
Ela mesma sugere que
[...] As políticas educacionais e de formação para o trabalho podem entregar as mulheres e aos negros ferramentas necessárias para um melhor desempenho no mundo do trabalho. São importantes, também, as atividades de capacitação para o desenvolvimento de carreiras profissionais que permitam ascender a posições superiores hierarquicamente, como forma de enfrentar a segmentação do mercado de trabalho, permitindo seu acesso às ocupações de melhor nível de remuneração e prestígio” [...]”(VALENZUELA, 1999, p.173)
Mas por tudo o que já foi demonstrado neste artigo, essas medidas seriam o suficiente para elevar os negros a melhores condições de vida, ou seja, ao status de burguês? É claro que não! O negro continua sendo a maior vítima do desemprego e das ocupações precarizadas mesmo quando possui a mesma escolaridade do “branco”.
Assim sendo, acredita-se que a única forma de promover a igualdade entre as pessoas, mais especificamente, de eliminar a concepção generalizada da inferioridade inata da raça negra, é eliminando a estrutura de organização social que necessariamente precisa inventar os seus “inferiores” para justificar a miséria gerada pelo sistema, eleger uma cultura e valores superiores para generalizá-los amplamente e hierarquizar as relações entre homens e mulheres.
Somente alterando as práticas cotidianas entre as pessoas na sua totalidade, ou seja, a forma como se organizam para reproduzir a sua vida material (econômica), é que seria possível alterar as suas concepções e ideologias, transformando a sua subjetividade. Isso não vai acontecer se essas pretensas alterações práticas forem realizadas isoladamente, como os pequenos grupos da chamada economia solidária que surgem no interior do sistema capitalista, mas que seguem essencialmente o modelo de gestão empresarial do dominador para poder concorrer no mercado. E o mercado é capitalista e sua essência é a concorrência e não a solidariedade.
Ainda não há vestígios de melhorias concretas neste terreno, porque ainda não se conseguiu disseminar de forma eficaz a gravidade e a urgência de uma discussão nacional e mundial em prol de um novo projeto de organização social, que priorize o desenvolvimento das potencialidades humanas e de suas individualidades em detrimento do capital. A degradação humana é cada vez maior, mas as ideologias patrocinadas pelo Estado e disseminadas por seus veículos (a mídia, a polícia, a escola, a fábrica, etc), nublam as vistas e atrofiam a luta contra essa tendência.
Fanon, chega a algumas conclusões importantes sobre o negro e esta forma de sociabilidade.
[...] Se ele se encontra submerso a esse ponto pelo desejo de ser branco, é que ele vive em uma sociedade que torna possível seu complexo de inferioridade, em uma sociedade cuja consistência depende da manutenção desse complexo, em uma sociedade que afirma a superioridade de uma raça, é na medida exata em que esta sociedade lhe causa dificuldades que ele é colocado em uma situação neurótica [...] (FANON, 1983, p.83)
E continua afirmando que só há um caminho possível para a transformação dessa estrutura social injusta.
[...] o negro não deve ser mais colocado dentro desse dilema: tornar-se branco ou desaparecer, mas ele deve poder tomar consciência de uma possibilidade de existir, ou se a sociedade lhe causa dificuldades, devido a sua cor, se eu constato em seus sonhos a expressão de um desejo inconsciente de mudar de cor, meu objetivo não será dissuadi-lo, aconselhando-lhe a “manter suas distâncias”; meu objetivo, ao contrário será, uma vez as causas determinantes esclarecidas, torná-lo capaz de escolher a ação (ou a passividade) a respeito da verdadeira origem do conflito isto é, a respeito das estruturas sociais [...] (FANON, 1983, p.83-84)
Sendo assim, resta a ciência e aos estudiosos da causa, pulverizar as informações a respeito das injustiças vividas e sofridas, que é parte imanente, indissociável do sistema capitalista de organização material da vida em sociedade. Sem maquiagens, sem falsas ilusões e soluções, é preciso compreender a realidade e lutar sem perder de vista a raiz do problema. Sem um projeto que possa dar fim à lógica dessa estrutura social e suas contradições, jamais se poderá pensar em igualdade e liberdade em seu sentido etimológico.
______________
[1] Classificação adotada pelo instituto de pesquisa.
[2] Supondo este exemplo fictício, se encontrássemos em uma região 3 negros com curso superior nos quais todos estivessem empregados e 10 brancos com curso superior nos quais 7 estariam empregados eu teria uma taxa de desemprego por grau de escolaridade mais elevada entre os brancos, que seria de 30%.
Clique e cadastre-se para receber os informes de atualização da Revista Urutágua
4 Bibliografia
ALVES, G. O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo: Boitempo, 2000.
ANTUNES, R. Adeus ao trabalho?: ensaios sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. Campinas: Cortez, 1999.
DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SÓCIO-ECONÔMICO. A situação do trabalho no Brasil. São Paulo, 2001.
FANON, F. O falso complexo de dependência do colonizado. In: ______. Pele Negra Máscaras Brancas. Rio de janeiro: Fator, 1983, p.81-79.
FANON, F. Da violência. In: ______. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S.A, 1979, p.25-74.
MALAGUTI, M. L. Crítica à razão informal: a imaterialidade do salariado. São Paulo: Boitempo, 2000.
MELLO, J.M.C. e NOVAIS, F.A. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In: NOVAIS, F.A. (coord). História da vida privada no Brasil (4). São Paulo: Companhia das Letras , 1999, p.560-657.
SARTRE, J.P. Prefácio. In: Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S.A, 1979, p. 03-21.
VALENZUELA, M.E. Igualdade de oportunidades e discriminação de raça e gênero no mercado de trabalho no Brasil. In: Abertura e ajuste do mercado de trabalho no Brasil: políticas para conciliar os desafios de emprego e competitividade. Brasília: OIT e MTE; São Paulo: Ed.34, 1999. p.149-178.
VESENTINI, J.W. Imperialismo e geopolítica global: espaço e dominação na escala planetária. Campinas: Papirus, 1990.
WEST,C. Além da ação afirmativa: igualdade e identidade. In: Questão de Raça. São Paulo: Companhia das letras, 1994, p.80-85.

©Copyright 2001/2005 - Revista Urutágua - revista acadêmica multidisciplinar
Centro de Estudos Sobre Intolerância - Maurício Tragtenberg
Anterior Proxima Inicio

0 comentários:

Postar um comentário