quarta-feira, 31 de agosto de 2016

John Pilger / Eles provocam a guerra nuclear através dos media

Eles provocam a guerra nuclear através dos media


por John Pilger
Slobodan Milosevic.A absolvição de um homem acusado do pior dos crimes, o genocídio, não provocou manchetes. Nem a BBC nem a CNN cobriram isto. Só o Guardian permitiu um breve comentário. Uma tão rara confissão oficial foi enterrada ou ocultada, compreensivelmente. Ela explicaria demasiado acerca do modo como os dominadores do mundo governam.

O Tribunal Penal Internacional para a antiga Jugoslávia (ICTY, na sigla em inglês), em Haia, silenciosamente absolveu o falecido presidente sérvio, Slobodan Milosevic, de crimes de guerra cometidos durante a guerra da Bósnia de 1992-95, incluindo o massacre de Srebrenica.

Longe de conspirar com o condenado líder bósnio-sérvio Radovan Karadzic, Milosevic realmente "condenou a limpeza étnica", opôs-se a Karadzic e tentou impedir a guerra que desmembrou a Jugoslávia. Enterrada no fim de uma sentença de 2.590 páginas sobre Karadzic, em Fevereiro último, esta verdade mais uma vez demole a propaganda que em 1999 justificou a carnificina ilegal da NATO na Sérvia.

Milosevic morreu de um ataque de coração em 2006, sozinho na sua cela em Haia, durante a uma farsa de julgamento inventado por um "tribunal internacional" americano. Recusada a cirurgia que poderia ter salvo sua vida, a sua condição de saúde agravou-se e foi monitorada e mantida secreta por responsáveis dos EUA, como revelou a WikiLeaks.

Milosevic foi a vítima da propaganda de guerra que hoje flui como uma torrente através dos nossos écrans e jornais e acena com grandes perigos para todos nós. Ele foi o protótipo do demónio, vilipendiado pelos media ocidentais como o "carniceiro dos Balcãs" responsável por "genocídios", especialmente na província jugoslava secessionista do Kosovo. O primeiro-ministro Tony Blair disse isso, mencionou o Holocausto e exigiu acção contra "este novo Hitler". David Scheffer, o embaixador itinerante dos EUA para crimes de guerra (sic), declarou que até "225 mil albaneses étnicos entre 14 e 59 anos" podiam ter sido assassinados pelas forças de Milosevic.

Esta foi a justificação para o bombardeamento da NATO, liderado por Bill Clinton e Blair, que matou centenas de civis em hospitais, escolas, igrejas, parques e estúdios de televisão e destruiu infraestrutura económica Sérvia. Isto foi descaradamente ideológico. Na notória "conferência de paz" em Rambouillet, em França, Milosevic foi confrontado por Madeleine Albright, a secretária de Estado dos EUA, a mesma que atingiu a infâmia com a sua observação de que a morte de meio milhão de crianças iraquianas "valeu a pena".

Albright fez a Milosevic uma "oferta" que nenhum líder nacional poderia aceitar. A menos que concordasse com a ocupação militar estrangeira do seu país, com as forças ocupantes "isentas de processo legal" e com a imposição de um "mercado livre" neoliberal, a Sérvia seria bombardeada. Isto estava contido num "Apêndice B", o qual os media deixaram de ler ou ocultaram. O objectivo era esmagar o último estado "socialista" independente da Europa.

Uma vez começado o bombardeamento da NATO houve uma debandada de refugiados kosovares "a fugirem de um holocausto". Quando acabado, equipes internacionais de polícia baixaram ao Kosovo para exumar as vítimas do "holocausto". O FBI não conseguiu encontrar uma única sepultura em massa e voltou para casa. A equipe espanhola de perícia forense fez o mesmo, o seu líder colericamente denunciou "uma pirueta semântica da máquinas de propaganda de guerra". A contagem final dos mortos no Kosovo foi de 2.788. Isto incluía combatentes de ambos os lados e sérvios e ciganos assassinado pela Frente de Libertação do Kosovo, pró NATO. Não houve genocídio. O ataque da NATO foi tanto uma fraude como um crime de guerra.

Poucos dos louvados mísseis "de precisão" da América atingiram alvos militares. Atingiram, sim, alvos civis – incluindo os estúdios de noticiários da Rádio Televisão Sérvia em Belgrado. Dezasseis pessoas foram mortas, incluindo operadores de câmara, produtores e maquiladores. Blair descreveu as mortes, grosseiramente, como parte do "comando e controle" da Sérvia. Em 2008, a promotora do Tribunal Penal Internacional para a Antiga Jugoslávia, Cala Del Ponte, revelou que fora pressionada a não investigar crimes da NATO.

Este foi o modelo para as invasões seguintes de Washington ao Afeganistão, Iraque, Líbia e, furtivamente, a Síria. Todas qualificam-se como "crimes supremos" sob o padrão de Nuremberga; todas dependeram da propaganda dos media. Enquanto o jornalismo tablóide desempenhou a sua parte tradicional, o jornalismo sério, crível e muitas vezes liberal foi o mais eficaz – a promoção evangélica de Blair e suas guerras pelo Guardian, as mentiras incessantes acerca das não existentes armas de destruição em massa de Saddam Hussein no Observer e no New York Times, e o indefectível bater de tambores com propaganda governamental por parte da BBC em meio ao silêncio das suas omissões.

Na altura do bombardeamento, Kirsty Wark, da BBC, entrevistou o general Wesley Clark, o comandante da NATO. A cidade sérvia de Nis acabara de ser pulverizada com bombas cluster americanas, matando mulheres, idosos e crianças num mercado ao ar livre e num hospital. Wark não perguntou uma única questão acerca disto, ou acerca de quaisquer outras mortes civis. Outros foram mais ousados. Em Fevereiro de 2003, no dia seguinte após Blair e Bush terem ateado fogo ao Iraque, o editor político da BBC, Andrew Marr, substituiu-se à Downing Street e fez o equivalente a um discurso de vitória. Excitadamente ele contou ao seu público que Blair havia "dito que seria capaz de tomar Bagdad sem um banho de sangue e que no fim os iraquianos estariam a celebrar. E sobre estes dois pontos ele se havia provado conclusivamente correcto". Hoje, com um milhão de mortos e uma sociedade em ruínas, as entrevistas de Marr na BBC são recomendadas pela embaixada dos EUA em Londres.

Colegas de Marr alinharam-se para proclamar que Blair como "vingado". O correspondente da BBC em Washington, Matt Frei, disse: "Não há dúvida de que o desejo de trazer o bem, trazer os valores americanos para o resto do mundo e especialmente para o Médio Oriente ... está agora cada vez mais ligado ao poder militar".

Esta reverência aos Estados Unidos e seus colaboradores como uma força benigna que "traz o bem" está profundamente entranhada no establishment do jornalismo ocidental. Ela assegura que a culpa pela catástrofe dos dias actuais na Síria é exclusivamente de Bashar al-Assad, a quem o ocidente e Israel há muito conspiram para derrubar, não por quaisquer preocupações humanitárias, mas para consolidar o poder agressivo de Israel na região. As forças jihadistas desencadeadas e armadas pelos EUA, Grã-Bretanha, França, Turquia e seus procuradores da "coligação" servem a este fim. São eles que distribuem a propaganda e os vídeos que se tornam notícias nos EUA e na Europa e que dão acesso a jornalistas que garantam uma "cobertura" unilateral da Síria.

A cidade de Alepo está nos noticiários. A maior parte dos leitores e telespectadores estará inconsciente de que a maioria da população de Alepo vive na parte ocidental da cidade controlada pelo governo. Que eles sofrem bombardeamento de artilharia diário a partir da al-Qaida patrocinada pelo ocidente não está nas notícias. Em 21 de Julho, bombardeiros franceses e americanos atacaram uma aldeia do governo na província de Alepo, matando até 125 civis. Isto foi noticiado na página 22 do Guardian, sem fotografias.

Tendo criado e endossado o jihadismo no Afeganistão na década de 1980 como a Operação Ciclone – uma arma para destruir a União Soviética – os EUA estão a fazer algo semelhante na Síria. Tal como os mujahideen afegãos, os "rebeldes" sírios são soldados de infantaria da América e da Grã-Bretanha. Muitos combatem pela al-Qaida e suas variantes. Alguns, como a Frente Nusra, rebaptizaram-se para cumprir sensibilidades americanas quanto ao 11/Set. A CIA dirige-os, com dificuldade, assim como dirige jihadistas de todo o mundo.

O objectivo imediato é destruir o governo em Damasco, o qual, segundo o inquérito de opinião mais crível (YouGov Siraj), a maioria dos sírios apoias ou pelo menos procura-o para protecção, apesar da barbárie nas suas sombras. O objectivo a longo prazo é negar à Rússia um aliado chave no Médio Oriente como parte de uma guerra da NATO contra a Federação Russa que em algum momento a destrua.

O risco nuclear é óbvio, embora ocultado pelos media por todo "o mundo livre". Os editorialistas do Washington Post, tendo promovido a ficção das ADM no Ira que, pedem que Obama ataque a Síria. Hillary Clinton, que publicamente rejubilou-se pelo seu papel de carrasco durante a destruição da Líbia, indicou reiteradamente que, como presidente, irá "mais além" do que Obama.

Gareth Porter, um jornalista samidzat que informa a partir de Washington, revelou recentemente os nomes daqueles que provavelmente constituirão um gabinete de Clinton, a qual planeia um ataque à Síria. Todos têm histórias beligerantes na guerra fria. O antigo director da CIA, Leon Panetta, diz que "o próximo presidente prepara-se para considerar acrescentar forças especiais adicionais sobre o terreno".

O que é mais notável acerca da propaganda de guerra agora em clímax é seu absurdo e familiaridade patentes. Tenho andado a procurar em arquivos de filmes de Washington da década de 1950 quando diplomatas, funcionários públicos e jornalistas sofreram a caça às feiticeiras e foram arruinados pelo senador Joe McCarthy por desafiar as mentiras e a paranóia acerca da União Soviética e da China. Tal como um tumor ressurgente o culto anti-Rússia retornou.

Na Grã-Bretanha, Luke Harding do Guardian lidera os inimigos da Rússia do seu jornal a um fluxo de paródias jornalísticas que atribuem a Vladimir Putin todas as iniquidades da terra. Quando a fuga dos Panama Papers foi publicada, a primeira página dizia Putin, e havia uma foto dele. Pouco importa que Putin não fosse mencionado em parte alguma dos Panama Papers.

Tal como Milosevic, Putin é o Demónio Númbero Um. Foi Putin que derrubou um avião de carreira da Malásia sobre a Ucrânia. Manchete: "Tanto quanto me preocupa, Putin matou meu filho". Nenhuma prova é exigida. Foi Putin o responsável pelo documentado (e pago) derrube de Washington em 2014 do governo eleito em Kiev. A campanha de terror que se seguiu por milícias fascistas contra a população de língua russa da Ucrânia foi o resultado da "agressão" de Putin. Impedir a Crimeia de se tornar uma base de mísseis da NATO e proteger a maior parte da população russa que votou num referendo par voltar à Rússia – da qual a Crimeia fora anexada – foram mais exemplos da "agressão" de Putin. A difamação pelos media inevitavelmente torna-se guerra pelos media. Se a guerra com a Rússia estalar, por intenção ou por acidente, jornalistas arcarão com grande parte da responsabilidade.

Nos EUA, a campanha anti-russa foi elevada a realidade virtual. O colunista do New York Times Paul Krugman, um economista com Prémio Nobel, chamou Donald Trump de "Candidato siberiano" porque Trump é homem Putin, diz ele. Trump ousou sugerir, num momento de rara lucidez, que guerra com a Rússia pode ser uma ideia má. De facto, ele avançou ainda mais e removeu despachos de armas americanas para a Ucrânia da plataforma republicana. "Isto não seria bom para chegar a um acordo com a Rússia", disse ele.

Eis porque o establishment belicista liberal da América o odeia. O racismo de Trump e as vociferações demagógicas nada tem a ver com isto. O registo de Bill e Hillary Clinton de racismo e extremismo pode ultrapassar o de Trump. (Esta semana é o 20º aniversario da "reforma" da previdência de Clinton que lançou uma guerra aos afro-americanos). Quanto a Obama: enquanto a polícia americana abate a tiros seus companheiro afro-americanos a grande esperança na Casa Branca nada fez para protegê-los, nada para aliviar seu empobrecimento, enquanto dirigia quatro guerras de rapina e uma campanha de assassinatos sem precedente.

A CIA tem pedido que Trump não seja eleito. Generais do Pentágono têm pedido que não seja eleito. O pró guerraNew York Times – fazendo uma pausa na sua implacável difamação ordinária de Putin – pede que não seja eleito. Algo se agita. Estes tribunos da "guerra perpétua estão aterrorizados com a perspectiva de que negócios de guerra de muitos milhares de milhões de dólares pelos quais os EUA mantêm a sua dominância sejam minutos se Trump fizer um acordo com Putin, a seguir com Xi Jinping da China. O seu pânico perante a possibilidade de a maior potência do mundo falar de paz – ainda que improvável – seria a mais negra das farsas se as questões em causa não fossem tão terriveis.

"Trump teria amado Stalin!" rugiu o vice-presidente Joe Biden num comício a favor de Hillary Clinton. Com Clinton a anuir, ele gritou: "Nós nunca nos curvamos. Nós nunca nos inclinamos. Nós nunca nos ajoelhamos. Nós nunca nos rendemos. Nós possuímos a linha de chegada. Isso é o que somos. Somos a América!"

Na Grã-Bretanha, Jeremy Corbyn também excitou a histeria dos fautores da guerra no Partido Trabalhista e nos media dedicados a descartá-lo. Lord West, antigo almirante e ministro do Trabalho, disse isso bem. Corbyn estava a adoptar uma "ultrajante" posição anti-guerra "porque consegue que massas irracionais (unthinking) votem por ele".

Num debate com o líder que o desafiava, Owen Smith, o moderador perguntou a Corbyn: "Como actuaria numa violação por Vladimir Putin de um estado companheiro da NATO?" Corby respondeu: "Você desejaria evitar que isso acontecesse em primeiro lugar. Você construiria um bom diálogo com a Rússa... Tentaríamos introduzir uma desmilitarização das fronteiras entre a Rússia, a Ucrânia e os outros países que fazem fronteira com a Europa do Leste. O que não podemos permitir é uma série de calamitosas acumulações de tropas de ambos os lados, as quais só podem levar a um grande perigo".

Pressionado a dizer se autorizaria uma guerra contra a Rússia "se tivesse de fazer", Corbyn replicou: "Não desejo ir à guerra – o que desejo fazer é alcançar um mundo em que não precisemos de ir à guerra".

A linha de questionamento deveu-se muito à ascensão de liberais belicosos na Grã-Bretanha. O Partido Trabalhista e os media há muito que lhes oferecem oportunidades de carreira. Por um momento o tsunami moral do grande crime do Iraque deixou-os em apuros, as suas inversões da verdade num embaraço temporário. Pouco se importante com [o relatório] de Chilcot e a montanha de facto incriminadores, Blair permanece a sua inspiração porque ele foi um "vencedor".

O jornalismo e o mundo académico dissidente tem sido sistematicamente banido ou apropriado e as ideias democráticas esvaziada e repreenchidas com "políticas de identidade" que confundem género com feminismo e ansiedade pública com libertação e deliberadamente ignoram a violência do estado e os lucros com armas que destroem vidas incontáveis em lugares remotos, como o Iémen e a Síria, e acenam à guerra nuclear na Europa e por todo o mundo.

A mobilização de pessoas de todas as idades que cerca a ascensão espectacular de Jeremy Corbyn contrapõe-se a isto em alguma medida. Sua vida foi passada a iluminar o horror da guerra. O problema de Corbyn e seus apoiantes é o Partido Trabalhista. Na América, o problema para os milhares de seguidores de Bernie Sanders era o Partido Democrático, sem mencionar a sua traição final à grande esperança. Nos EUA, lar dos grandes movimentos de direitos civis e anti-guerra, é no Black Lives Matter e nos outros da espécie do Codepink [1] que repousam as raízes das suas versões moderna.

Só um movimento que cresça em todas as ruas e através de fronteiras e não desista pode travar os instigadores da guerra. No próximo ano fará um século desde que Wilfred Owen escreveu este poema. Todo jornalista deveria le-lo e recordá-lo... 
Se pudesse ouvir, a cada tossida, o sangue
Que jorra
destes pulmões envenenados,
Obsceno como o cancro, amargo como o vómito
De úlceras vis e incuráveis sobre línguas inocentes,
Meu amigo, tu não dirias com tamanho entusiasmo
A crianças ansiosas por uma glória desesperada,
A velha mentira: Dulce et decorum est
Pro patria mori. [2]
[1] Movimento de Mulheres para a Paz
[2] Doce e honroso é morrer pela pátria. 


Ver também em resistir.info:
  • As estranhas condições da morte de Milosevic , 13/Mar/06
  • Milosevic no tribunal da NATO: quando os criminosos se arvoram em juízes , 03/Mar/06
  • “Bombardeámos o lado errado”, afirma o ex-comandante da NATO no Kosovo , 04/Mai/04
  • Os amantes da guerra , 28/Mar/06
  • Os silêncios de ouro no sistema de propaganda dos EUA , 01/Jun/15

    O original encontra-se em johnpilger.com/articles/provoking-nuclear-war-by-media 


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
  • terça-feira, 30 de agosto de 2016

    Carlos Juliano Barros / ....empregos precários e sub-remunerados



    Opinião

    A riachuelização do Brasil

    À nata dos empresários, incentivos fiscais e crédito subsidiado. Ao grosso dos trabalhadores, empregos precários e sub-remunerados
    por Carlos Juliano Barros — publicado 25/08/2016 04h56
    Facebook / Riachuelo
    Riachuelo
    Riachuelo: o dono critica a relação do capital privado com o BNDES, mas usou empréstimos do banco público para crescer


    Você já ouviu falar de Flávio Rocha? Nascido no Recife, ele é o herdeiro e presidente da Riachuelo, grupo empresarial de sua família que, nos últimos dez anos, virou referência de fast fashion e se transformou na rede de varejo de moda que mais cresce no Brasil. Antes de trilhar a carreira de executivo, Flávio Rocha até se aventurou na política entre as décadas de 1980 e 1990, quando chegou a ser deputado federal e correligionário do ex-presidente Fernando Collor de Melo.
    Como quase todo CEO de sucesso que se preze, Flávio Rocha é dado a hábitos disruptivos que transformam homens de negócio em super-heróis e artistas. Já correu algumas vezes a maratona de Nova York e coleciona nas paredes de sua casa obras exclusivíssimas – do ícone pop americano Andy Warhol ao cerebral pintor venezuelano Carlos Cruz-Díez.     
    Só que Flávio Rocha vai muito além de um executivo vencedor. Um dos mais barulhentos porta-vozes do empresariado nacional a defender o impeachment de Dilma Rousseff, o presidente da Riachuelo é um liberal convicto e crítico mordaz do "capitalismo de conluio" – ou crony capitalism, na expressão popularizada pelo professor da Universidade de Chicago, Luigi Zingales – que em sua opinião se instalou no Brasil durante a era PT. Um dos seus alvos prediletos é a "política dos campeões nacionais" do BNDES, o banco estatal de fomento da economia brasileira. 
    De fato, não há como negar que o governo federal usou e abusou do BNDES para distribuir dinheiro farto a juros subsidiados, às vezes até abaixo do próprio custo de captação de capital, para os amigos da corte – Eike Batista e JBS que o digam.
    Incentivo fiscal
    Placa mostra o apoio do governo federal à Guararapes Confecções em Natal (Foto: Lilo Clareto / Repórter Brasil)
    Para os adversários do PT, a farra do dinheiro barato liberado a gigantes do PIB nacional, escolhidos à revelia da meritocracia do mercado, tolheu a formação do mercado de capitais e inibiu o financiamento privado no Brasil. 
    Em recente entrevista concedida a Miriam Leitão, na Globo News, Flávio Rocha foi categórico sobre o assunto: "Essas deformações, como subsídios na hora do crédito, também têm o efeito de distorcer a economia". Mas o presidente da Riachuelo só se esqueceu de mencionar que a empresa de sua família também encheu a pança na boquinha dos juros camaradas do BNDES – tudo dentro da lei, obviamente. 
    Uma rápida consulta pública ao site do banco (abaixo) mostra que, entre 2009 e 2016, a Riachuelo e a indústria do grupo (chamada Guararapes Confecções) levantaram financiamentos da ordem de R$ 1,44 bilhão para, dentre outras coisas, investir numa fábrica no Ceará e expandir a rede de lojas país afora. Como se não bastassem as taxas de juros do BNDES mais baixas do que as praticadas pelo mercado, a planta industrial construída em Fortaleza, assim como outra fábrica instalada no Rio Grande do Norte, também se beneficia da isenção de 75% do Imposto de Renda – informação que pode ser pescada do próprio site da Riachuelo.

    CartaCapital
    Mesmo sem citar esses dados, Miriam Leitão foi obrigada a jogar a real em cadeia nacional com o presidente da Riachuelo: "Quando os empresários brasileiros vão ser coerentes com o liberalismo que pregam?"
    Flávio Rocha é um entusiasta declarado da "Ponte para o Futuro", programa de reformas liberalizantes encampado pelo PMDB do presidente-interino Michel Temer. E já elegeu a sua prioridade: a flexibilização da legislação trabalhista. Na verdade, enquanto a CLT não vira letra morta, a Riachuelo já vem cortando os custos de produção do seu império de fast fashion
    Parte da confecção de roupas da rede, por exemplo, é terceirizada para oficinas do sertão do Seridó, no Rio Grande do Norte, onde autoridades já flagraram violações graves como jornadas excessivas, trabalho sem carteira assinada e pagamentos abaixo do salário mínimo. 
    A transferência de parte da produção da Riachuelo para o sertão do estado se deu depois de 2012, quando o Ministério Público do Trabalho multou em R$ 27 milhões a empresa por descumprimento de normas de saúde e segurança na fábrica localizada na capital Natal. O caso foi resolvido por meio de um acordo. 
    Atualmente, Flávio Rocha é um dos mais eminentes arautos do processo de "riachuelização" que vem se desenhando no país. À nata dos empresários, incentivos fiscais e crédito subsidiado – mesmo quando essas medidas são tidas como ataques aos princípios do livre mercado. Ao grosso dos trabalhadores, empregos precários, exaustivos e sub-remunerados, sem qualquer proteção do Estado. E assim se constrói a ponte para o futuro no Brasil.
    *Carlos Juliano Barros, diretor de "Entre os Homens de Bem", é jornalista e documentarista. Em parceria com Caio Cavechini, dirigiu "Carne Osso - O Trabalho em Frigoríficos", vencedor do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos de 2013, e "Jaci - Sete Pecados de uma Obra Amazônica", selecionado para o festival "É Tudo Verdade" e vencedor da Mostra Ecofalante de 2016.

    Neil Clark / Sigam a pista do dinheiro para perceber a origem da 'ameaça russa'

    Sigam a pista do dinheiro para perceber a origem da 'ameaça russa'


    por Neil Clark [*]
    Se vivem no Ocidente, e a menos que tenham estado trancados num guarda-roupa, devem ter ouvido frases ameaçadoras como 'A ameaça russa', 'Agressão russa na Europa' e 'A Rússia preparada para invadir a Polónia/Estónia/Ucrânia/Finlândia'.

    Certas pessoas estão a tentar assustar-nos estupidamente com a Rússia e com a 'ameaça' que este país parece representar. A histeria faz-nos lembrar a montagem da guerra do Iraque, quando éramos alertados todos os dias para a 'ameaça' das mortíferas armas de destruição maciça, que – surpresa, surpresa – afinal não existiam.

    Podemos passar horas a falar das grandes teorias bombásticas na área da geopolítica e das relações internacionais numa tentativa de explicar porque é que isto está a acontecer.

    Mas o que temos que fazer é seguir o 'rasto do dinheiro'. Pensem em quem beneficia financeiramente com todo este alarmismo e logo compreenderão.

    Esta semana, The Intercept revelou como os fornecedores da defesa dos EUA têm andado a dizer aos investidores que a alegada 'ameaça russa' é boa para os negócios.

    Richard Cody, general do exército reformado, e vice-presidente da L-3 Communications, o sétimo maior fornecedor de defesa, lamentou o facto de que "quando acabou a velha Guerra-Fria, os orçamentos para a defesa sumiram-seMas agora, uma 'Rússia ressuscitada' significava que " "vinha aí um aumento". 

    Stuart Bradie, chefe executivo da CBR, também enviou uma mensagem igualmente otimista que falava das "oportunidades" que a atual situação apresenta.

    O processo para maiores gastos com a defesa para conter a 'ameaça russa' foi montado por uma série de grupos de reflexão. E sabem que mais? Os mais aguerridos lobistas – perdão, 'grupos de reflexão' – recebem um considerável financiamento dos fornecedores de defesa dos EUA!

    The Intercept cita os exemplos do Instituto Lexington e do Atlantic Council.

    Mas ainda há muitos outros. Em fevereiro passado, escrevi sobre um instituto político dos EUA, 'não partidário', chamado Center for European Policy Analysis. O CEPA emitiu um documento em que atacava a agência noticiosa russa Sputnik por dar voz a "políticos anti-establishment" que criticavam a NATO.

    E quem financia a CEPA 'não partidária'? Os doadores mais recentes incluem o Departamento da Defesa dos EUA, a Boeing, a Raytheon Company, a Textron Systems, a Sikorsky Aircraft, a Bell Helicopter e a Lockheed Martin Corporation.

    O que está a acontecer hoje na Europa é o mesmo que tem acontecido no Médio Oriente há anos.

    Os EUA criam o caos, depois acorrem a vender aos países da região os últimos equipamentos militares para os 'proteger' do caos. É uma verdadeira fraude e uma clara imitação dos esquemas de extorsão da Máfia. Os países que não querem pagar, como a Jugoslávia nos anos 90, sujeitam-se a serem bombardeados.

    Vitoria Nuland e o embaixador dos EUA na Ucrânia.Reparem como começou a crise na Ucrânia. Os EUA gastaram milhares de milhões de dólares numaoperação de 'mudança de regime' para derrubar o governo democraticamente eleito de Viktor Yanukovych e substitui-lo por uma administração fantoche pró-EUA. Até ouvimos Victoria Nuland do Departamento do Estado – depois de ter entregue bolachas aos protestantes antigoverno em Maidan – a analisar quem devia figurar ou não no novo governo 'democrático' ucraniano, com o embaixador norte-americano, Geoffrey Pyatt.

    Quando o povo da Crimeia votou 'Nyet', como seria de esperar, à operação do Departamento de Estado e votou esmagadoramente num referendo a favor da união com a Rússia, a Rússia foi acusada de ser a 'agressora' que tinha 'invadido' a Ucrânia. Os EUA deviam saber que a sua operação de mudança de regime na Ucrânia provocaria o caos e aumentaria as tensões com a Rússia. E foi isso mesmo o que fizeram!

    Para combater a nova 'ameaça' russa não apenas à Ucrânia 'democrática', mas a outros países na Europa de leste, disseram-nos que era preciso um grande aumento nas despesas da NATO com a 'defesa'. Quem beneficia com isso? Claro, os fornecedores da defesa norte-americanos!

    No ano passado, conforme relatei aqui , a Polónia mandou melhorar militarmente os Patriot Missiles, feitos nos EUA – fabricados por Raytheon – e os helicópteros militares Airbus, por 5,53 mil milhões de dólares.

    Em novembro de 2014, a Estónia 'ameaçada' adquiriu 80 mísseis Javelin aos EUA, por 40 milhões de euros. Em fevereiro, ouvimos dizer que o país ia gastar , em 2020, 818 milhões de euros em novo armamento e equipamento.

    Como comentou Charlie Chaplin na sua clássica comédia de humor negro de 1947, "Guerras, conflitos, é tudo negócio!" 

    Qualquer análise objetiva revela que é a NATO – e não a Rússia – com a sua concentração de armas e soldados nas fronteiras da Rússia, que ameaça a paz da Europa. Mas quem quer que assinale isso e refira a incessanteDrang nach Osten da aliança militar, ameaça os lucros das empresas de defesa dos EUA e é atacado como 'pacifista' ou 'marionete do Kremlin' por aqueles que têm manifestos interesses financeiros em manter a tensão elevada.

    Reparem nos ataques histéricos ao líder do partido britânico Labour, Jeremy Corbyn, pelos seus recentes comentários muito conscientes sobre a NATO e a Rússia.

    Perguntaram a Corbyn num debate televisivo:   "Enquanto primeiro-ministro, como reagiria se Putin violasse a soberania de um estado membro da NATO?" 

    Respondeu: "Obviamente, em primeiro lugar, tentaria impedi-lo. Estabeleceria um bom diálogo com a Rússia para lhes pedir e os manter dentro das respetivas fronteiras. Tentaria fomentar a desmilitarização da Rússia e da Ucrânia e de todos os outros países na fronteira entre a Rússia e a Europa de Leste. Não podemos é permitir uma série de continuadas concentrações de tropas de ambos os lados, que só poderão conduzir a um enorme perigo para o futuro. Começa a ter o aspeto terrível da política da Guerra Fria na presente época. Temos que nos comprometer com a Rússia, comprometer com a desmilitarização naquela área, a fim de tentar evitar que esse perigo aconteça… Não desejo entrar numa guerra, quero é conseguir um mundo em que não haja qualquer necessidade de entrar em guerras, em que elas não sejam necessárias. É possível fazer-se isso". 

    Como assinala Carlyn Harvey, ao escrever no The Canary:   "Para milhões de cidadãos em todo o mundo, isso (a posição antiguerra de Corbyn) é uma ótima notícia. Mas para os que tencionam manter a política de poder e para as indústrias lucrativas que os apoiam, a visão de Corbyn está condenada ao desastre". 

    O incansável grupo de pressão para a guerra classifica Corbyn como um 'perigoso extremista' porque, se outros políticos ocidentais o seguirem, e promoverem o desarmamento e o diálogo, em vez da confrontação e da guerra, os lucros da defesa sofrerão um rude golpe.

    Foi um presidente norte-americano, Dwight D Eisenhower, o primeiro a alertar-nos contra o complexo militar-industrial, em 1961:   "Temos que nos precaver contra a aquisição de uma influência indesejável, procurada ou não, do complexo militar-industrial" , disse.

    Ninguém podia acusar, o Supremo Comandante da Forças Aliadas na Europa, na II Guerra Mundial, de ser 'comuna' ou 'marioneta do Kremlin'. Mas a situação é hoje muito pior do que era na época de Eisenhower.

    Os neoconservadores imiscuíram-se nos corredores do poder. Apregoam estar interessados em espalhar a ' democracia', mas na realidade o movimento neoconservador só se preocupa com dinheiro e lucros. Henry 'Scoop' Jackson, o político norte-americano que se opôs violentamente à détente com a União Soviética nos anos 70, foi alcunhado, com toda a razão, de 'Senador para a Boeing'.

    Trinta anos depois, a primeira reunião pós abertura da Sociedade Henry Jackson discutiu  como difamar o académico antiguerra Noam Chomsky, por ele não aceitar a classificação de genocídio quanto ao massacre de Srebrenica.
    Parece que, para certas pessoas, a velha Guerra-Fria nunca acabou.

    Quanto tempo mais os cidadãos do mundo aguentarão uma situação em que os defensores da guerra, com ligações ao complexo militar-industrial, têm toda a liberdade de alimentar as tensões internacionais? Na próxima vez que lerem ou ouvirem alguém a falar da 'ameaça russa' – e porque é que a NATO precisa de reforçar os seus gastos para lhe fazer frente – simplesmente sigam a pista do dinheiro.

    Provavelmente será uma revelação. 
    22/agosto/2016

    [*] Jornalista, escritor, homem da rádio e bloguista. Tem escrito para muitos jornais e revistas no Reino Unido e noutros países, incluindo The Guardian, Morning Star, Daily e Sunday Express, Mail on Sunday, Daily Mail, Daily Telegraph, New Statesman, The Spectator, The Week The American Conservative. É colaborador regular da RT e também tem aparecido na TV BBC e na rádio, no Sky News, na Press TV e na Voz da Rússia. É cofundador da Campaign For Public Ownership @PublicOwnership. Vejam o seu blogue, distinguido com um prémio em www.neilclark66.blogspot.com . Tweeta sobre política e assuntos mundiais @NeilClark66 

    O original encontra-se em www.rt.com/op-edge/356726-russian-threat-paranoia-money/ .
    Tradução de Margarida Ferreira. 


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

    segunda-feira, 29 de agosto de 2016

    Carlos Lopes Pereira / Guerras e crises na África de hoje

    Guerras e crises na África de hoje

     Carlos Lopes Pereira     23.Ago.16     Colaboradores
    «Não são boas as notícias que chegam de África. Persistem guerras em diferentes países e surgem ou prolongam-se crises políticas noutros. As actuais guerras africanas têm um traço comum: a ingerência estrangeira. É velha a estratégia imperialista de fomentar conflitos armados e divisões étnicas e religiosas para melhor dominar os povos e explorar as suas riquezas».

    É assim na Líbia, produtora de petróleo, onde os diversos governos, parlamentos, exércitos, milícias armadas e grupos terroristas recebem «ajudas» em armas e dinheiro tanto de «democráticos» governos ocidentais como das reaccionárias monarquias árabes. Líbia onde, cinco anos após a destruição do país pela intervenção da NATO, volta a haver bombardeamentos aéreos pelos norte-americanos e, onde, no terreno, proliferam tropas especiais estado-unidenses, britânicas, francesas e italianas…
    Ainda no Norte de África, a par da acção de bandos terroristas, desde o Sinai até ao Sul da Argélia, mantém-se o domínio colonial de Marrocos, aliado dos EUA e do Ocidente, sobre o Saara Ocidental, impedindo pela ocupação militar o povo saarauí de exercer o seu direito à autodeterminação e independência.
    Mais a Sul, na faixa saheliana, de onde irradiam em várias direcções jihadistas e traficantes, a guerra continua centrada no Mali, ocupado por forças francesas e «instrutores» europeus. Para o controlo desta região e da África Ocidental, Paris dispõe de um dispositivo militar com quartel-general em Djamena, no Chade, além de mais tropas e bases em outras capitais, de Niamey a Dakar.
    Há também guerras abertas ou encobertas e tropas estrangeiras – em alguns casos em missões da União Africana ou das Nações Unidas – na zona Leste da República Democrática do Congo, na República Centro-Africana, no Darfour sudanês e no Sudão do Sul.
    Na África Ocidental, a Nigéria, exportadora de crude e segunda potência económica do continente, enfrenta alguns movimentos separatistas e assiste, no Nordeste, à regionalização da guerra movida pelos terroristas do Boko Haram, a qual provocou o envolvimento dos exércitos do Níger, dos Camarões e do Chade, apoiados por Paris e Washington.
    Na África do Leste, além da existência de bases militares estrangeiras no Djibuti, uma ameaça à paz, as acções do Al-Shabab, na Somália, atingem aquele país, onde há forças da União Africana e tropas norte-americanas, e o vizinho Quénia.
    Eleições e crises
    A par da continuação de guerras, multiplicam-se em África as crises políticas, que, aliás, não são exclusivas deste continente.
    A mais recente surgiu na Zâmbia, onde o presidente cessante Edgar Lungu, da Frente Patriótica, foi reeleito na primeira volta, com 50,3 por cento dos votos e uma pequena margem sobre o mais forte opositor, Hakainde Hichilema, que obteve 47,6 por cento. Este denunciou ter havido «fraude» no processo eleitoral e prometeu impugnar os resultados na justiça zambiana.
    Já na Guiné-Bissau os problemas são antigos. Partido mais votado nas últimas eleições, o PAIGC viu demitido o seu governo pelo presidente da República. Formou-se um novo executivo, com apoios de deputados dissidentes do PAIGC e do maior partido da oposição. Mas o parlamento não aprova o programa de governo e a crise prolonga-se, gerida de forma pacífica nas instâncias políticas e jurídicas nacionais.
    Também São Tomé e Príncipe teve eleições presidenciais, mas à segunda volta concorreu apenas um candidato, Evaristo de Carvalho, apoiado pelo partido governamental. O opositor, Pinto da Costa, presidente da República cessante, recusou-se participar num processo que considerou «viciado» e «repleto de ilegalidades». Os resultados estão a ser contestados nos tribunais santomenses.
    Mais grave é o que acontece em Moçambique. As eleições gerais de Outubro de 2014 foram ganhas pela Frelimo mas o principal partido da oposição, a Renamo, não aceitou os resultados, apesar de validados pelos órgãos eleitorais do país e por observadores internacionais.
    O seu líder, Afonso Dhlakama, que nunca venceu qualquer eleição, pretende governar seis províncias onde, considera, o seu partido teve mais votos. Não tendo sido aceite tal exigência, a Renamo, ainda que participando da vida política institucional, com os seus deputados no parlamento, lançou uma série de acções armadas no centro do país, atacando alvos civis.
    Em Maputo, em conversações com o governo e a Renamo, há mediadores internacionais que tentam nestes dias avistar-se com Dhlakama, refugiado em «lugar seguro» na serra da Gorongosa, cercada pelas forças armadas moçambicanas.
    Este artigo foi publicado pelo jornal Avante! em 18-08-16

    150 toneladas de ouro no rio Xingu podem ser espoliadas por mineradora canadense




    150 toneladas de ouro no rio Xingu podem ser espoliadas por mineradora canadense

    Rochas da ilha da Ressaca, na Volta Grande do rio Xingu
    ilha da Ressaca, na Volta Grande do rio Xingu, pode desaparecer com exploração em larga escala de ouro.
    O Estado do Pará possui algumas das maiores reservas minerais de ferro, bauxita, manganês e ouro do planeta, sendo que seu PIB depende principalmente dos recursos provenientes das atividades mineradoras. A canadense Belo Sun Mining Corporation, pertencente ao grupo Forbes & Manhattan Inc., desde 2012 vem se apropriando de grandes áreas com reservas de ouro na região do baixo rio Xingu, e a expectativa é que se extraiam mais de 150 toneladas de ouro das rochas do rio. Porém, enquanto empresas como a já citada, além de outras, como a Vale, a estadunidense Alcoa, a suíça Xstrata, a francesa Imerys, a Reinarda, subsidiária da australiana Troy Resourses, a norueguesa Norsk Hydro e a chilena Codelco atuarem de forma predatória sobre os recursos minerais da Amazônia, a tendência é se aprofundar a destruição do ecossistema regional, o desaparecimento de rios, a expulsão de comunidades tradicionais e o roubo descontrolado das riquezas naturais que pertencem ao povo do Pará.
    Grandes projetos mineradores não são novidades na região amazônica, em especial no Pará. Ao final da década de 1970, os governos militares promoveram uma política de ocupação da região por meio de grandes empreendimentos econômicos, como a extração de ferro da Serra dos Carajás, a construção da hidrelétrica de Tucuruí, a abertura da jazida de manganês no município de Oriximiná e a construção da rodovia Transamazônica. Tais intervenções tiveram como consequência prejuízos irreversíveis à biodiversidade da região, já que esses projetos foram colocados em prática sem se considerar nenhum estudo de impactos socioambientais. Hoje, quase quarenta anos depois, são claras as consequências na vida de centenas de milhares de pessoas, vítimas diretas ou indiretas desses empreendimentos. Os assassinatos de trabalhadores por questões fundiárias, o desmatamento gigantesco, em especial no sul e sudeste paraense, a não indenização às famílias removidas de suas casas, entre outros, são fatores que geram um repúdio às novas propostas de grandes projetos a serem colocados em prática no Estado do Pará, como a hidrelétrica e a jazida de ouro da região da Volta Grande do rio Xingu.
    Durante a construção da hidrelétrica de Belo Monte, o grupo Forbes & Manhattan iniciou negociações com os governos do Pará e Federal para controlar as áreas de extração de ouro nas margens do rio Xingu, no município de Senador José Porfírio. Tal empreendimento está localizado à apenas 11 km da principal barragem de Belo Monte, e a 400 km de Serra Pelada, jazida de ouro famosa no mundo inteiro pelo “formigueiro humano” de mais de 80 mil garimpeiros que para lá foram em busca do minério. Serra Pelada teve suas reservas quantificadas em 30 toneladas de ouro, das quais mais da metade já foi extraída, gerando, ainda, conflitos entre grupos políticos, garimpeiros e latifundiários que almejam controlar a maior parte da jazida, além do grupo japonês Miyabras, que, em 2015, lançou a proposta de reabertura total da jazida, fechada pelo Governo Federal em 1992 por conta da inundação do garimpo.
    Segundo estudos do Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM, na Volta Grande do rio Xingu estão depositadas mais de 150 toneladas de ouro, conhecidas desde a década de 1940 por garimpeiros da região, porém embargadas de serem exploradas por estar localizada em uma reserva federal de proteção ambiental. A legislação ambiental só autoriza a exploração mineral em reservas federais caso seja instalado um grande projeto de engenharia, como uma hidrelétrica. Daí a insistência, de governos e empreiteiras, em colocar em prática a construção de Belo Monte, mesmo com dezenas de laudos e relatórios inviabilizando o empreendimento, passando por cima da vontade e resistência dos povos indígenas e ribeirinhos que recusaram a instalação dessa hidrelétrica na região, diante da possibilidade de diminuição do volume d’água do rio Xingu, gerando morte de peixes e desestabilizando o ecossistema necessário à subsistência das comunidades. Há perto de 500 pedidos de prospecção protocolados junto ao DNPM somente na Volta Grande do Xingu, e, desse total, 228 possuem foco no ouro.
    A sanha pela exploração do ouro nessa região já levou a Belo Sun a realizar diversas ações que, mesmo sem autorização legal concreta, possibilitem uma verdadeira espoliação da região ao estilo “Brasil Colônia”. Em 2012, foi lançado, na Bolsa de Valores de Toronto, o Consórcio Belo Sun Mining Corporation, movimentando mais de R$ 1,5 bilhão em sua estruturação. O envio de cianeto, que será usado para extrair o ouro das rochas, já está sendo transportado, gradualmente, à região. Esse químico é altamente tóxico, e pode gerar um gigantesco impacto ambiental nos arredores da mina e ao longo do rio. O uso de dragas e dinamites também já está sendo organizado. Está pronto o desenho da barragem que abrigará os dejetos da exploração, capaz de acumular 96 milhões de m³ de lama tóxica, uma vez e meia maior que a barragem de Mariana, de Minas Gerais, que se rompeu em novembro de 2015.
    Outro dado importante é que um dos engenheiros civis que assinaram o relatório entregue ao DNPM sobre a construção da barragem de dejetos do rio Xingu é o mesmo que está sendo indiciado por homicídio, pois assinou o laudo de estabilidade da barragem do fundão, de Mariana. A própria Belo Sun e o DNPM avaliam como alta a probabilidade de rompimento da barragem da Volta Grande do Xingu. Os garimpos Grota Seca, Galo e Ouro Verde, utilizados por trabalhadores garimpeiros há mais de 60 anos, foram fechados pela mineradora canadense, com placas e cercas já sinalizando que a área pertence ao grupo Belo Sun. Os povos indígenas Juruna e Arara sofrerão diretamente os impactos da mineração do ouro, pois seu acesso ao rio Xingu será bloqueado.
    São vários os fatores que inviabilizam esse projeto minerador no Estado do Pará. A contrapartida social é mínima. Mesmo em impostos, nem R$ 500 milhões virão aos cofres públicos anualmente, devido à vigência da Lei Kandir, de 1996, que isenta as mineradoras de pagar o principal imposto do Tesouro Público, o ICMS. Além disso, esse valor não corresponde nem a 1% do montante de lucro que será gerado pela extração do ouro, o qual será enviado em forma bruta ao Canadá, para processamento e marcação. A Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle (CMA), do Senado Federal, em agosto de 2016, por inciativa de Telmário Mota (PDT-RR), instalará sessões especiais para avaliar a situação complexa que está acontecendo no rio Xingu, a qual envolve a mineração e a produção de energia. Serão convocados o secretário de estado de Meio Ambiente, Luiz Fernando Rocha, e Maria Amélia Enríquez, secretária-adjunta de Desenvolvimento Econômico, Mineração e Energia, ambos do Pará, para prestar esclarecimentos sobre a tramitação do processo de autorização, instalação e fiscalização do projeto do grupo Belo Sun no rio Xingu.
    No capitalismo, o Brasil, em especial os estados dependentes de commodities, como o Pará, a destruição do meio ambiente, a pobreza e os conflitos fundiários se reproduzem initerruptamente. Nos municípios que receberam os grandes projetos, como Parauapebas, Altamira e Oriximiná, a segregação tomou conta da região. Engenheiros, executivos e técnicos moram em vilas equipadas com hospitais, escolas, praças, enquanto que a população trabalhadora é segregada, morando nos núcleos municipais superlotados, sem pavimentação e esgoto, saúde e educação precárias, além da escalada da prostituição e do tráfico de drogas gerada pela falta de planejamento e de políticas públicas que deem alternativas ao povo. Apesar de todos os problemas apresentados, é possível superar esse estágio atual de sociedade, rumo a um modelo que garanta que as riquezas de nosso solo e rios pertençam e estejam a serviço da sociedade. Se é necessária a construção de novas universidades e hospitais, se é urgente aumentar os empregos para tirar a juventude da criminalidade, devemos utilizar esses recursos que nos estão sendo roubados, porém, para isso, somente uma transformação radical da sociedade, que estabeleça o poder popular sobre o governo e sobre a produção econômica do país garantirá vida digna ao nosso povo.
    Matheus Tavares Nascimento, estudante da UFPA e militante do PCR
    jornal A Verdade
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