sexta-feira, 3 de julho de 2015

Julio C. Gambina / Fome, pobreza, segurança ou soberania alimentar

Fome, pobreza, segurança ou soberania alimentar

Julio C. Gambina
02.Jul.15 :: Colaboradores
A partir do movimento camponês mundial, generalizou-se a concepção de soberania alimentar. Concepção que é crítica, contraditória e diferente do conceito de segurança alimentar sustentado pela FAO e pelo discurso hegemónico em matéria de produção agrária e alimentar.

A pobreza e a fome reapareceram no debate, a propósito de na FAO ter sido premiada a situação nutricional na Argentina.
O tema adquiriu relevância com a difusão pela Presidente de dados da pobreza e da indigência, afirmando que a pobreza é inferior a 5% e a indigência pouco supera o 1%.
O Ministro de Economia esclareceu rapidamente que o prémio para a Argentina era por o país estar “abaixo de 5% do índice de fome” [1]  e não de pobreza. É uma situação que o país mantém juntamente com Chile, Brasil e Uruguai, enquanto Bolívia e Paraguai, entre os vizinhos, estão ainda acima desse valor.
A pobreza e a fome são questões muito distintas, ainda que associadas, num país em que existe população subalimentada, mas também com grande capacidade para atender as necessidades alimentares, sendo a disponibilidade de recursos suficientes o limite para a população menos favorecida.
Pretendemos chamar a atenção sobre o facto de que a pobreza está mais além da fome e manifesta-se pela impossibilidade de satisfazer necessidades sociais mais amplas, como a saúde, a educação, a habitação ou o lazer.
Isto dito num país com alta densidade de população idosa com rendimentos de aposentadoria relativamente escassos em relação às necessidades. A estatística do ANSES assegura que mais de metade dos aposentados nacionais recebe a pensão mínima, numa pirâmide de rendimentos cada vez mais achatada. Mas são também milhões os que recebem rendimentos escassos derivados de uma política social massiva, não universal, que pode até certo limite mitigar as necessidades básicas mas não as alargadas, e que explicam a pobreza para além dos indicadores que sejam exibidos.
Agreguemos que a pobreza se mede de diferentes formas e que na Argentina se tem em conta a pobreza estrutural e a pobreza por rendimentos. A primeira remete para as necessidades básicas não satisfeitas e que se medem com cada censo da população. A segunda está associada à capacidade de satisfazer um cabaz mínimo. Por isso, pode haver pobres estruturais com rendimentos superiores aos mínimos e, pelo contrário, população sem ou com baixos rendimentos e com património, pelo que a estatística não os inclui como pobres estruturais. Pode viver-se em bairros sociais com grandes rendimentos, ou em habitações herdadas em zonas mais ricas e com rendimentos escassos ou nulos. Em outros países os indicadores são diversos e nem sempre fáceis de utilizar para comparações.
Os dados da pobreza estão discontinuados pelo INDEC desde 2013 e a referencia feita pela Presidenta remete para essa remota avaliação, muito criticada a partir de diferentes abordagens profissionais, independentemente da proximidade ou afastamento dos objectivos e propósitos do governo. A difusão de dados actualizados continuar sendo um assunto pendente por parte do INDEC.
Diferentes estudos remetem para percentagens estimadas de 16 a 25% de pobreza, um valor inferior ao pico de 2002, mas muito superior à média histórica da Argentina. Isso evidencia problemas estruturais da ordem económico social na Argentina que derivam das mudanças profundos geradas nos últimos 40 anos, desde o rodrigazo, a ditadura e a década de 90. São processos que contaminam o presente e se mantêm como problemas e desafios a resolver pela sociedade e, claro, no âmbito da política, que parece distante se olhamos para os principais discursos e projectos que disputam o governo local.
Segurança versus soberania alimentar
Na recente reunião da FAO [2]  foi passada em revista a situação da alimentação da população mundial e, nesse quadro, do estado da segurança alimentar enfatizando os avanços nesse sentido, vinculados às metas do milénio que se encontram em análise neste ano de 2015. Entretanto, é importante mencionar que a partir do movimento camponês mundial se generalizou a concepção de soberania alimentar, crítica, contraditória e diferente do conceito de segurança alimentar sustentado por aquele organismo internacional e pelo discurso hegemónico em matéria de produção agrária e alimentar.
A segurança alimentar não questiona o modelo produtivo, nem o seu impacto social, mesmo quando a FAO coloca a tónica do seu conclave na alimentação e a mudança climática. O pressuposto da segurança alimentar parte da utilização da produção agraria nas condições tecnológicas e formas produtivas que as transnacionais da alimentação e da biotecnologia generalizam e dominam, transnacionais que são principais beneficiárias da ordem produtiva do capitalismo contemporâneo.
Por seu lado, a soberania alimentar recupera para os povos, as comunidades, a agricultura familiar e a pequena produção agraria a capacidade de decidir o que produzir, para quem, como, e com quem levar adiante o processo produtivo. Não se trata de alimentar de qualquer modo, mas sim respeitando o metabolismo da natureza, da qual o ser humano faz parte. Esta concepção parte da critica ao modelo produtivo hegemónico, e da concepção que a categoria da segurança alimentar transporta consigo.
Entre ambas as posições pode pensar-se a transição para a resolução da fome, utilizando a articulação da segurança alimentar com a soberania, como é sugerido nos objectivos de política pública no Estado plurinacional da Bolívia. Isso supõe alimentar a população que tem limites de rendimentos para o acesso aos alimentos, enquanto se modifica o modelo de produção para generalizar uma política sustentada na soberania alimentar.
Convenhamos que na Argentina a discussão entre segurança e soberania alimentar é um debate em suspenso, assumido como discurso de um activismo militante por outro modelo produtivo, e escamoteado pelas classes dominantes e suas representações políticas e ideológicas. Estas adornam as suas mensagens com a roupagem da assistência alimentar (assistencialismo) para sustentar o mecanismo da obtenção de lucros e da acumulação para a dominação capitalista.
Buenos Aires, 13 de Junho de 2015
[1] http://www.eldestapeweb.com/pobreza-kicillof-defendio-cristina-y-resalto-el-premio-la-fao-n6613 (consultado el 12/06/2015)
[2] El Estado de la Inseguridad Alimentaria en el Mundo 2015. En: http://www.fao.org/publications/en/ (consultado el 12/06/2015)


Julio C. Gambina
Presidente da Fundação de Investigações Sociais e Políticas, FISYP
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