Em traços largos, como pode ser comprovado na
figura 1, as taxas de juro implícitas (as
yields,
as rendibilidades) das obrigações do tesouro portuguesas a dez
anos, nos mercados secundários da dívida, estão em queda
desde o final de janeiro de 2012. Numa análise um pouco mais fina, sem
prejudicar essa apreciação global, poderia ressalvar-se um
período de menos de quatro meses de crescimento oscilante e
relativamente diminuto em 2013, mas desde meados de setembro o declínio,
menos acentuado mas com menos irregularidades, basicamente prosseguiu.
Importa realçar que este expressivo declínio se iniciou quase
seis meses antes do presidente do banco central europeu, Mario Draghi, ter
declarado em Londres, no final de julho de 2012, que a sua
instituição faria tudo o que fosse necessário para
preservar o euro. E mais ainda antes do anúncio, em setembro do mesmo
ano, do enquadramento do programa do BCE de compra ilimitada, sob estrita
condicionalidade, de dívida pública dos países do euro nos
mercados secundários (
OMT,
da sigla inglesa), nunca efetivado.
Na verdade, com outras durações e outros ritmos, o mesmo se
passou com os títulos de dívida pública de longo prazo de
outros países do euro em dificuldades, como a Grécia, a Irlanda e
mesmo, apesar de com bastante menos antecedência, a Espanha. Mas é
preciso ir mais longe: a descida das taxas de juro, novamente a traços
largos, era já um fenómeno largamente generalizado, na Europa e
no mundo. Tal deveria dar que pensar àqueles que sobrevalorizam a
influência, contudo nada negligenciável, das
declarações e dos anúncios do presidente do banco central
europeu. Já para não falar da incrível patetice de
atribuir méritos ao governo português.
A explicação mais aprofundada do declínio das taxas de
juro das obrigações nos mercados secundários da
dívida soberana, com destaque evidentemente para as gregas, tem
essencialmente dois lados e, embora de desigual importância, a
explicação fica incompleta sem mencionar ambos. É da
conjugação dos dois que se produz o fenómeno. E quando nos
referimos ao fenómeno, referimo-lo do ponto de vista estrutural,
não das conjunturas diárias, sensíveis às
contingências dos percalços de saúde do Obama ou da Merkel
ou dos humores do Draghi ou da Yellen (até há pouco, do Bernanke)
nas conferências de imprensa do BCE ou da Reserva Federal.
Estruturalmente, o fator mais importante é a crise de
sobreacumulação do capital, verdadeiro pano de fundo sem o qual
não é possível compreender grande coisa do tempo que
vivemos, originada pelo declínio, irregular mas tendencial, da taxa
geral de lucro. Claro que é possível referir-se às suas
grandes implicações sem entrar em discussões mais
aprofundadas quanto às causas, nem sempre possível ou oportuna.
Basta então salientar a insuficiência de crescimento, a
estagnação, a recessão ou mesmo a depressão. Este
é o primeiro aspeto, que dá o cenário de fundo, que tendem
a esquecer, a desvalorizar, a menosprezar ou a ocultar a generalidade dos
economistas e dos comentadores da ideologia e do mediatismo dominantes.
O outro fator, também determinante de um ponto de vista estrutural, e
conjunturalmente mesmo decisivo, é a enorme massa de liquidez atual, que
busca naturalmente aplicações mais rentáveis. É
aqui que a "caixa-de-ferramentas" dos bancos centrais, e não
apenas do BCE, não é, de maneira nenhuma, desprezável,
nomeadamente com as políticas expansionistas que incrementam
substancialmente a criação e a oferta monetárias. Este
segundo aspeto, da gigantesca criação e da massa de dinheiro
presentes na economia mundial, atuando no pano de fundo da depressão
económica (ou da estagnação económica europeia e da
insuficiência de crescimento mundial), torna-se decisivo para que mais
capitais se arrisquem na compra de ativos financeiros menos seguros. Há
sempre uma grande dispersão na predisposição para o risco
nos investimentos, mas como o volume de capitais
circulando fora ou simplesmente afastados do investimento produtivo tem
aumentado substancialmente, para o que contribuem deveras as tais
políticas expansionistas dos bancos centrais (numa tentativa, mais ou
menos aberta e mais ou menos infrutífera, de sustentar a economia e o
emprego), aumenta também a quantidade dos que são investidos em
ativos bastante mais arriscados, ainda que eventualmente mais lucrativos.
Resumindo, antes de precisar melhor. É necessário referir os dois
lados. A estagnação ou depressão económica (causada
pelo declínio tendencial da taxa de lucro e a crise de
sobreacumulação de capital) e a elevada e crescente massa de
liquidez vigente na economia mundial. Porque é da
combinação dos dois que estruturalmente resulta o aumento da
procura de ativos financeiros – uma "inflação
financeira" que pode transformar-se em bolha especulativa –, com o
consequente aumento do preço desse ativos. O que se traduz, no caso do
mercado secundário dos títulos de dívida pública,
numa diminuição das taxas de juro implícitas: o mesmo
rendimento para um ativo mais caro. É o que temos assistido nos mercados.
Claro que, sobre isto, atuam os inúmeros fatores conjunturais,
nomeadamente da política nacional, e, muito especialmente, a
influência dos sentimentos, das perceções públicas e
das expetativas veiculadas pela comunicação social. A
combinação peculiar mas singularmente favorável de uma
estagnação de fundo inundada de liquidez com a expetativa de uma
ligeira retoma (que melhor seria apresentada como uma pausa, possivelmente
prolongada, na recessão) contribui poderosamente para uma
diminuição da perceção do risco de
aquisição dos títulos de dívida pública dos
estados mais problemáticos da periferia europeia – insolventes,
porque não se deteve a dinâmica de insolvência, que
obrigará necessariamente a uma reestruturação da
dívida –, como a Grécia ou Portugal. Mas livrem-nos a
nós de andar a seguir ao dia as cotações das
obrigações do tesouro; essa ansiedade que fique para Passos
Coelho, Portas e Cia.
Não vale a pena perder tempo com o nervosismo diário das curvas
dos mercados e seria aventureirismo fazer aqui previsões, num sistema
que para além do mais é intrinsicamente turbulento, mas é
claro que, talvez com vários acidentes e significativas
variações de ritmo, o prosseguimento da queda das taxas de juros
é, nestas condições, uma possibilidade que não pode
ser minimamente descartada. Incógnita ainda maior é o
inevitável limite dessa descida.
Um parêntesis para destacar uma implicação fundamental.
A dívida pública portuguesa anda próxima dos 130% do PIB
(129,0% no final de 2013), as taxas de juro das obrigações a dez
anos próxima dos 5% (4,85%, no fecho de 25 de fevereiro). No
começo de 2012, a dívida pública estava a 108,3% e as
taxas de juro das OT a 10 anos a 13,54%. Ou seja, no espaço de
pouco mais de dois anos, a dívida pública variou (aumentou) cerca
de um quinto, mas as taxas de juro variaram (diminuíram) perto de dois
terços. A taxa de juro das obrigações do tesouro pode
diminuir para metade ou aumentar para o dobro, com relativa facilidade, em
meses (em situações mais excecionais, em dias); a dívida
pública, para suceder o mesmo, precisaria de muitos anos (ou
décadas). Tirando os exageros, pretende-se chamar a
atenção de que, em termos comparativos, enquanto a dívida
pública varia lentamente, os respetivos juros variam rapidamente. O
elemento ágil, o elemento dinâmico no curto prazo, são os
juros.
Estruturalmente, no longo prazo, a dívida é impagável,
insustentável. Mas conjunturalmente, no curto e médio prazo, a
dívida pode indo ser cumprida, suportável. No curto prazo, os
juros da dívida são decisivos. O enorme peso da dívida, a
sua trajetória, a sua dinâmica, criaram um lastro que torna
insustentável o pagamento e condiciona gravosamente, permanentemente,
estruturalmente, a intervenção pública e a vida
económica nacional. Mas, sobre esse pano de fundo, em cada conjuntura, o
elemento que pode despoletar os problemas de liquidez, a insolvência, a
bancarrota, ou o incumprimento, a reestruturação, as
negociações, os empréstimos externos sob condicionalidade,
a intervenção estrangeira, são os juros.
Para uma mesma dívida pública, que à escala da
variação dos juros varia tão lentamente que pode ser
tomada como constante, uma taxa de juro do dobro ou metade daria o dobro ou
metade de juros a pagar. Está-se a simplificar, porque as dívidas
têm maturidades, taxas de juro e condições de pagamento
muito diversas, mas novamente para chamar a atenção de que se
estruturalmente o fator determinante é o tremendo peso da dívida,
conjunturalmente, e é sempre dentro de uma conjuntura que nos movemos e
atuamos, dada essa situação estrutural, o fator decisivo
são os juros.
É por isso que, sempre que o nível dos juros da dívida
pública de longo prazo baixa, como tem sucedido, nos mercados, a clique
governamental respira de alívio, enche-se de jactância, levanta a
grimpa e fala de alto sobre o abandono da
troika.
O contrário quando sobem. Tudo isso os ultrapassa, em nada ou quase
nada depende deles, mas tiveram a sorte de às dificuldades estruturais
do capitalismo europeu e mundial e à intervenção
desesperada dos grandes poderes monetários internacionais para lhes dar
resposta se ter associado um arremedo de retoma interesseiramente traduzida em
expetativas largamente ilusórias pelos grandes poderes
mediáticos. Resultado: as taxas de juros da dívida aterram, pelo
menos não levantam voo. A conjuntura é esta e é com esta
que provavelmente vamos viver nos próximos tempos, o que não
deixará de ter reflexos e deverá ser levado em conta na
intervenção eleitoral das próximas europeias, por parte
das forças políticas e sociais que querem romper com esta Europa
dos monopólios e do capital acumulado à custa da fome e do
empobrecimento dos povos.
Fechado o parêntesis, retomemos.
Um bom indício da importância que têm as políticas
dos bancos centrais na oferta de liquidez internacional é a
sensibilidade das taxas de juro às expetativas quanto às
alterações dessas políticas, como por exemplo da eventual
diminuição progressiva (do
tapering
) da flexibilização quantitativa (do
quantitative easing
), a política monetária inconvencional seguida atualmente pela
reserva federal estadunidense.
Mas em que medida é que se pode falar de aumento de liquidez, de
criação monetária, de políticas expansionistas,
sobretudo quando a política europeia, entenda-se da zona euro
(excluindo, desde logo e muito significativamente, a Inglaterra), nem sempre
parece afinar por esse diapasão?
Como se pode constatar na
figura 2
, a base monetária monetária
mundial (isto é, da oferta de
dinheiro no sentido mais restrito, de notas e moedas em
circulação ou nos cofres-fortes dos bancos mais as reservas
depositadas nos bancos centrais) tem crescido ao longo das últimas duas
décadas. A grande queda na zona euro, ao longo de 2013 (mas que apenas
anulou a grande subida, acima da tendência, que a precedeu, em contraste
com o incremento no Reino Unido),
não altera esta realidade global
. A este propósito convém assinalar que os mercados financeiros,
para os chamados investidores institucionais (bancos, seguradoras, fundos de
pensões, fundos de risco, fundos e sociedades de investimento), funciona
globalmente, como aliás pode ser modestamente apreciado pela
participação dos investidores externos à zona euro na
recente emissão de dívida pública portuguesa.
Convém não meter estes investidores todos no mesmo saco, porque,
ainda que na busca de maiores rentabilidades, alguns pretendem manter os
títulos em carteira enquanto outros já os adquirem a pensar no
momento em que se desfarão deles; é, por exemplo,
significativamente diferente a atitude de um fundo de pensões que
procura diversificar e valorizar uma carteira estável de investimentos
ou a atitude extremista de um
hedge fund
teleguiado cegamente por um sofisticado algoritmo matemático ao sabor
das cotações instantâneas do mercado. Estas
distinções não interessam agora. Aqui o que importa
realçar é que – nomeadamente no caso europeu – os
mercados financeiros especulativos funcionam globalmente e a
evolução da base e da oferta monetárias mundiais
sobredeterminam frequentemente os efeitos das evoluções das
congéneres regionais.
Mas a questão, quanto às políticas monetárias, vai
mais fundo. As taxas de juro de referência dos bancos centrais dos
grandes pólos do capitalismo, da tríade capitalista, como pode
observar-se na
figura 3
, baixaram depois da irrupção da crise e
mantêm-se em
mínimos históricos, praticamente nulas (e mesmo negativas em
termos reais). As taxas de juro diretoras do BCE não constituem, a este
título, nenhuma exceção.
Outros aspetos das políticas monetárias contribuem para agigantar
a massa e a oferta monetária mundiais, o persistente aumento de
liquidez, o avolumar de capitais que se disponibiliza e se vira para os
investimentos financeiros. A descida das taxas de juro, convém
recordá-lo, traindo a intenção de ajudar o investimento
produtivo e criador, ou ao menos preservador, de emprego, facilita, pelo
contrário, os empréstimos para aplicações
financeiras e lubrifica espantosamente, tal como antes, os canais
especulativos, corroídos entretanto pela crise.
Como conclusão, reiteramos a necessidade de não desacompanhar a
certeira explicação da estagnação europeia e
mundial (a crise de sobreacumulação) do crescimento da liquidez,
do incremento da criação e oferta monetárias, à
escala mundial, canalizada espontaneamente em larga medida para as
aplicações financeiras especulativas, incluindo nas suas margens
aquelas mais arriscadas, em vez do necessário investimento produtivo,
paralisado pela falta de rentabilidade e de procura solvente.